sexta-feira, 30 de julho de 2010

Caros amigos:
Deixo-lhes a homilia deste domingo. Acho que para a próxima semana não poderei escrever nada. Que Deus os guarde. Estamos unidos em Cristo.
Pe. Antoine, LC

LEITURA I Co 1, 2; 2, 21-23

«Que aproveita ao homem todo o seu trabalho?»

Leitura do Livro de Coelet
Vaidade das vaidades — diz Coelet —
vaidade das vaidades: tudo é vaidade.
Quem trabalhou com sabedoria, ciência e êxito,
tem de deixar tudo a outro que nada fez.
Também isto é vaidade e grande desgraça.
Mas então, que aproveita ao homem todo o seu trabalho
e a ânsia com que se afadigou debaixo do sol?
Na verdade, todos os seus dias são cheios de dores
e os seus trabalhos cheios de cuidados e preocupações;
e nem de noite o seu coração descansa.
Também isto é vaidade.
Palavra do Senhor.

LEITURA II Col 3, 1-5.9-11

«Aspirai às coisas do alto, onde está Cristo»

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Colossenses
Irmãos:
Se ressuscitastes com Cristo,
aspirai às coisas do alto,
onde Cristo está sentado à direita de Deus.
Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra.
Porque vós morrestes
e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.
Quando Cristo, que é a vossa vida, Se manifestar,
também vós vos haveis de manifestar com Ele na glória.
Portanto, fazei morrer o que em vós é terreno:
imoralidade, impureza, paixões, maus desejos e avareza,
que é uma idolatria.
Não mintais uns aos outros,
vós que vos despojastes do homem velho com as suas acções
e vos revestistes do homem novo,
que, para alcançar a verdadeira ciência,
se vai renovando à imagem do seu Criador.
Aí não há grego ou judeu, circunciso ou incircunciso,
bárbaro ou cita, escravo ou livre;
o que há é Cristo,
que é tudo e está em todos.
Palavra do Senhor.

EVANGELHO Lc 12, 13-21

«O que preparaste, para quem será?»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
alguém, do meio da multidão, disse a Jesus:
«Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança comigo».
Jesus respondeu-lhe:
«Amigo, quem Me fez juiz ou árbitro das vossas partilhas?»
Depois disse aos presentes:
«Vede bem, guardai-vos de toda a avareza:
a vida de uma pessoa não depende da abundância dos seus bens».
E disse-lhes esta parábola:
«O campo dum homem rico tinha produzido excelente colheita.
Ele pensou consigo:
‘Que hei-de fazer,
pois não tenho onde guardar a minha colheita?
Vou fazer assim:
Deitarei abaixo os meus celeiros para construir outros maiores,
onde guardarei todo o meu trigo e os meus bens.
Então poderei dizer a mim mesmo:
Minha alma, tens muitos bens em depósito para longos anos.
Descansa, come, bebe, regala-te’.
Mas Deus respondeu-lhe:
‘Insensato! Esta noite terás de entregar a tua alma.
O que preparaste, para quem será?’
Assim acontece a quem acumula para si,
em vez de se tornar rico aos olhos de Deus».
Palavra da salvação.

Homilia do Pe. Antoine Coelho, LC

“A vida de uma pessoa não depende da abundância dos seus bens”, recorda-nos Cristo no Evangelho este domingo. Ilustra esta verdade com uma parábola. Os campos de um homem produziram uma excelente colheita. Então decide construir celeiros maiores para aí guardar o trigo. Agora que tem suficientes bens, espera poder descansar até ao fim de sua vida sem trabalhar. Mas eis então que acontece o que ele não podia prever: esta noite perderá a vida e deverá dar conta da mesma ao Criador.

Contou-me o outro dia um padre jovem acerca de um importante empresário italiano, já reformado, que a certa altura lhe comentou: “padre, passei toda a minha vida a ganhar dinheiro. Isso é o que eu sabia fazer e a isso dediquei as minhas energias. Agora dou-me conta que tudo isso não servia para nada. Como gostaria de voltar a ter a sua idade e de optar por uma missão como a que você escolheu!”

A morte há-de chegar um dia para todos nós. Daqui a pouco tempo ou daqui a muito tempo. Pouco importa. O facto é que teremos de dar conta de nossa vida a Deus, a um Deus, ainda por cima, que morreu pendurado numa cruz por nós. O que Ele nos dirá será muito simples: “Eu amei-te e dei tudo o que tinha para ti. Amaste tu também?”

Quando ouvirmos esta pergunta, como tudo nos parecerá diferente! Como tudo se verá a uma luz bem diversa! Talvez exclamaremos: “como fui tão ingénuo ao ponto de dar importância àquilo que não valia nada! Porque deixei-me atrapar e enganar por meras futilidades?” O éxito social, os vestidos bonitos, as carreiras profissionais, as modas, a beleza corporal e os prazeres do mundo...tudo isso, que agora ocupa as mentes e os corações, tudo isso que causa preocupações e não deixa dormir tranquilo, tudo isso...parecerá mais vazio que o vento.

Para ter bem presente, como diz o salmo de hoje, que somos como a erva que de manhã reverdece e de tarde murcha, não poucos religiosos e sacerdotes, meditavam sobre a morte com uma caveira em frente. Obviamente, não é necessário utilizar estes meios, mas sim é necessário reflexionar detenidamente sobre estas verdades. Cada minuto que passa aproxima-nos mais do fim. Como o estou a usar?

A base da nossa vida não podem ser as coisas materiais, nem os seres humanos. Só Deus, porque só Ele fica e porque só Ele é a fonte do amor, que não esquece os seus amigos. Rapidamente os homens sobre a terra esquecem até mesmo as maiores celebridades. Homens que se declararam, no seu auge, mais famosos que Jesus Cristo, agora interessam a poucas pessoas.

Por isso, é importante desapegar o coração dos bens, das ocupações e dos nossos planos humanos. Como fazê-lo? Quando algo ata o coração, como é difícil liberá-lo! Realmente, só Cristo e o seu Espírito podem realizar esta obra. São João e São Tiago tinham as mãos agarrando as redes, símbolo do apego à sua vida passada, mas quando Cristo passou por eles e chamou-os, largaram tudo. Até deixaram o pai na barca. São Pedro assistiu à pesca milagrosa e deu-se conta que toda a sua habilidade como pescador não era nada comparado com aquilo que Deus queria realizar através dele, se fosse dócil. Que poder tem a voz e as acções de Cristo para sacudir os nossos corações adormecidos! A primeira coisa é abrir os ouvidos do coração e acreditar neste poder. Sim, esta pessoa ou realidade sem a qual nem sequer imagino que poderei ser feliz, Deus pode liberar-me dela e tornar-me incomparavelmente ainda mais feliz que se a tivesse. Por mais que me pareça impossível, tenho que acreditar que Ele tem esse poder.

Então, armado com essa fé e consciente de que necessito ser liberado, irei a Cristo através de muitas vias: a oração diária, os sacramentos, a leitura da Sagrada Escritura, Nossa Senhora!, peregrinações, retiros, apostolado, a direcção espiritual etc. Meios não faltam, graças a Deus, pois Ele, tão desejoso de nos salvar, quis tender muitíssimas pontes entre Ele e nós. Falta às vezes a fé e a constança.

Termino, citando a segunda leitura, da carta de São Paulo aos Colossenses, pois formula admiravelmente estas ideias: “irmãos, se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra. Porque vós morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus...Portanto fazei morrer o que em vós é terreno: imoralidade, impureza, paixões, maus desejos e avareza, que é uma idolatria”. Sim, de facto, como diz São Paulo, já morremos com Cristo e já ressuscitamos com Ele pelo Baptismo, porque Cristo morreu e ressuscitou por nós. O poder da sua Resurreição em todo momento está a actuar em nós. Falta deixar que esta força liberadora, tão presente em nós, actue plenamente.

A fé, só a fé pode permitir, que Cristo termine de realizar o que já começou em nós. E o que é a fé? A fé é o nosso “sim” a Deus, um “sim” que aceita a aventura com Deus, que aceita o desconhecido, um “sim” que vence o temor do desconhecido, porque é capaz de olhar para o Deus que deu a vida por nós e quer responder com amor.

sábado, 24 de julho de 2010

Domingo XVII do tempo comum, Ano C

LEITURA I Gen 18, 20-32

«Se o meu Senhor não levar a mal, falarei»

Leitura do Livro do Génesis
Naqueles dias, disse o Senhor:
«O clamor contra Sodoma e Gomorra é tão forte,
o seu pecado é tão grave
que Eu vou descer para verificar
se o clamor que chegou até Mim
corresponde inteiramente às suas obras.
Se sim ou não, hei-de sabê-lo».
Os homens que tinham vindo à residência de Abraão
dirigiram-se então para Sodoma,
enquanto o Senhor continuava junto de Abraão.
Este aproximou-se e disse:
«Irás destruir o justo com o pecador?
Talvez haja cinquenta justos na cidade.
Matá-los-ás a todos?
Não perdoarás a essa cidade,
por causa dos cinquenta justos que nela residem?
Longe de Ti fazer tal coisa:
dar a morte ao justo e ao pecador,
de modo que o justo e o pecador tenham a mesma sorte!
Longe de Ti!
O juiz de toda a terra não fará justiça?»
O Senhor respondeu-lhe:
«Se encontrar em Sodoma cinquenta justos,
perdoarei a toda a cidade por causa deles».
Abraão insistiu:
«Atrevo-me a falar ao meu Senhor,
eu que não passo de pó e cinza:
talvez para cinquenta justos faltem cinco.
Por causa de cinco, destruirás toda a cidade?»
O Senhor respondeu:
«Não a destruirei se lá encontrar quarenta e cinco justos».
Abraão insistiu mais uma vez:
«Talvez não se encontrem nela mais de quarenta».
O Senhor respondeu:
«Não a destruirei em atenção a esses quarenta».
Abraão disse ainda:
«Se o meu Senhor não levar a mal, falarei mais uma vez:
talvez haja lá trinta justos».
O Senhor respondeu:
«Não farei a destruição, se lá encontrar esses trinta».
Abraão insistiu novamente:
«Atrevo-me ainda a falar ao meu Senhor:
talvez não se encontrem lá mais de vinte justos».
O Senhor respondeu:
«Não destruirei a cidade em atenção a esses vinte».
Abraão prosseguiu:
«Se o meu Senhor não levar a mal,
falarei ainda esta vez:
talvez lá não se encontrem senão dez».
O Senhor respondeu:
«Em atenção a esses dez, não destruirei a cidade».
Palavra do Senhor.


LEITURA II Col 2, 12-14
 
«Deus fez que, unidos a Cristo, voltásseis à vida e perdoou todas as faltas»

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Colossenses
Irmãos:
Sepultados com Cristo no baptismo,
também com Ele fostes ressuscitados
pela fé que tivestes no poder de Deus
que O ressuscitou dos mortos.
Quando estáveis mortos nos vossos pecados
e na incircuncisão da vossa carne,
Deus fez que voltásseis à vida com Cristo
e perdoou-nos todas as nossas faltas.
Anulou o documento da nossa dívida,
com as suas disposições contra nós;
suprimiu-o, cravando-o na cruz.
Palavra do Senhor.

EVANGELHO Lc 11, 1-13

«Pedi e dar-se-vos-á»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
estava Jesus em oração em certo lugar.
Ao terminar, disse-Lhe um dos discípulos:
«Senhor, ensina-nos a orar,
como João Baptista ensinou também os seus discípulos».
Disse-lhes Jesus:
«Quando orardes, dizei:
‘Pai,
santificado seja o vosso nome;
venha o vosso reino;
dai-nos em cada dia o pão da nossa subsistência;
perdoai-nos os nossos pecados,
porque também nós perdoamos a todo aquele que nos ofende;
e não nos deixeis cair em tentação’».
Disse-lhes ainda:
«Se algum de vós tiver um amigo,
poderá ter de ir a sua casa à meia-noite, para lhe dizer:
‘Amigo, empresta-me três pães,
porque chegou de viagem um dos meus amigos
e não tenho nada para lhe dar’.
Ele poderá responder lá de dentro:
‘Não me incomodes;
a porta está fechada,
eu e os meus filhos estamos deitados
e não posso levantar-me para te dar os pães’.
Eu vos digo:
Se ele não se levantar por ser amigo,
ao menos, por causa da sua insistência,
levantar-se-á para lhe dar tudo aquilo de que precisa.
Também vos digo:
Pedi e dar-se-vos-á;
procurai e encontrareis;
batei à porta e abrir-se-vos-á.
Porque quem pede recebe;
quem procura encontra
e a quem bate à porta, abrir-se-á.
Se um de vós for pai e um filho lhe pedir peixe,
em vez de peixe dar-lhe-á uma serpente?
E se lhe pedir um ovo, dar-lhe-á um escorpião?
Se vós, que sois maus,
sabeis dar coisas boas aos vossos filhos,
quanto mais o Pai do Céu
dará o Espírito Santo àqueles que Lho pedem!».
Palavra da salvação.
 
Homilia do Pe. Antoine Coelho, LC

A Biblia fala, sem lugar a dúvidas, da grandeza de Deus, mas também da grandeza do homem, sem deixar, no entanto, de mostrar, com uma crueza que ataranta, as debilidades deste.

Talvez seja relativamente à oração, mais que en nenhum outro tema, onde a Sagrada Escritura ensina mais claramente a coexistência da grandeza e da pequenez do ser humano. A liturgia deste domingo é especialmente eloquente a este respeito.

Na primeira leitura, Deus revela a Abraão que a destruição de Sodoma e Gomorra é iminente. Porque o terá feito? Porque precisa Deus dar a conhecer os Seus planos com uma ínfima criatura? É que deseja a intercessão de Abraão, seu amigo, a favor destas cidades. Nunca chegaremos a realizar quão grande é a bondade de Deus, quão grande é o seu respeito pelo homem, ao ponto de permitir que este tenha uma influência considerável sobre os Seus planos.

Aqui constatamente também com nitidez extraordinária como o Deus verdadeiro, o Deus da Bíblia, não é o deus que a filosofia nos pode dar a conhecer. Como Deus, um ser infinito, transcendente, perfeito, pode permitir que Sua Vontade omnipotente seja influenciada por uma criatura como o homem? Prestar-lhe tanta atenção pareceria absolutamente contrário à imutável dignidade de Deus.

No entanto, vale mais sem dúvida a revelação que Deus faz de si mesmo, ou seja, a Bíblia, que a lógica humana às vezes bastante orgulhosa, mas, no fim de contas, um tanto cega. Sim, o Deus de Abraão deixa-se tocar pelas petições. E aqui está a grandeza do homem: Deus toma-o em conta!

Então, neste lindíssimo texto do Génesis, que lemos neste domingo, vemos como Abraão vai recordando a Yahvé que não conviria destruir Sodoma e Gomorra, se nelas se encontrassem 50 justos. E Deus, como uma mãe que se enternece pelo filho, vai cedendo. Sim, se houver 50 justos, não acabará como as cidades. Abraão, ante a condescendência e simplicidade de Deus vai ganhando coragem. “E se houverem 45 justos em vez de 50? Por 5 justos que faltarem acabarás com a cidade?” E Deus decide não a destruir se encontrar estes 45 homens de Deus.

E vai insistindo Abraão, sempre com muito respeito, pois recorda a Deus que não existe uma razão válida para que o oiça, dado que ele, Abraão, é somente pó e cinza. Mas, na verdade, sim existe uma razão válida, a mais válida de todos: o amor de Deus que é Pai. Finalmente, depois de muita intercessão, Deus aceita não tocar nem Sodoma nem Gomorra se 10 fiéis aí viverem.

Deste diálogo, podemos desprender diversas características da oração eficaz: deve ser humilde. “Sou pó e cinza” , repete Abraão com lucidez. Deve ser insistente. Deus ama ser incomodado pela voz do filho que o chama, precisamente porque ama a voz do filho. Deve ser desinteressada. Abraão não busca uma vantagem pessoal em tudo isso. Até mesmo nas petições que mais podem implicar a própria pessoa, a oração deve ser desinteressada. “Senhor, quero ser curado do cancro! Mas quero mais a Tua Vontade. Faz de mim o que quiseres!” Ou então: “Senhor cura-me do cancro, mas que seja somente pela tua glória, para que vejam a grandeza das tuas obras!”

Assim é como se reza. Abraão não se quer impor. Quando reza, simplesmente ama. Reza com o coração e, por isso, toca realmente o Coração do Pai.

A leitura evangélica expõe com máxima simplicidade a lógica descrita na passagem do livro do Génesis. “Pedi e dar-se-vos-á; procurai e encontrareis; batei à porta e abrir-se-vos-á. Se um de vós for pai e um filho lhe pedir peixe, em vez de peixe dar-lhe-á uma serpente?”. É impossível exprimir com mais concisão, força e simplicidade esta lógica. Deus é Pai. Como Pai quer encher os seus filhos de bens. Para isso, basta que queiram isso, ou seja, que peçam. E pensar que nisso se joga todo o destino do homem! Mas realmente a nossa salvação depende só disso?

A nossa mente humana rebela-se. Gostaria de evocar factores familiares, culturales, psicológicos que intervêm na salvação ( e claro que intervêm, mas não são decisivos). Ou então de fazê-la depender de uma actividade humana mais complexa. Talvez para encontrar disculpas. Certa vez, um jovem estudante de teologia viu-me com uma revista dos beneditinos. Vinha em grandes letras, na capa da mesma, o lema “ora e trabalha”, próprio desta ordem monástica. Com visível desprezo murmurou: “não pode ser assim tão fácil!”

Mas claro que pode ser tão fácil assim. Claro que é tão fácil assim. Salvar-se e salvar outros não é complicado, como não foi complicado para Abraão interceder por Sodoma e Gomorra. Deus não nos vai complicar as coisas. Porque é Pai. Nós é que temos o coração metido em muitas coisas muito supérfluas e por tê-lo tão dividido não somos capazes de ver com lucidez e clareza a simplicidade que transforma e revoluciona as coisas, a simplicidade da oração que pede e pede e pede....

“Mas desanimo-me porque não vejo resultados!”, podemos pensar às vezes. É verdade que o facto de Deus seguir um calendário que não é o nosso, é muito custoso e pode causar desânimos momentâneos. Sim, sofremos muito com isso, mas Deus sabe o que faz e assim nos purifica interiormente. No entanto, na verdade, não é por isso que pessoas abandonam a luta ou não querem entrar nela. É porque nos custa entrar na simples lógica de Deus, é porque temos o coração metido em muitas coisas secundárias e é debilitado por elas. Como diz Bento XVI, no seu livro Jesus de Nazareth, o coração é o orgão através do qual vemos Deus. Mas, para isso, esse coração tem de estar centrado em Deus e nas coisas d’Ele, senão complica-se, perde objetividade e lucidez.

Ter o coração centrado n’Ele é um trabalho de todos os dias. Exige, diante das criaturas que nos atraem muito, elevar repetidas vezes a mente ao Senhor e dizer-lhe “Tu és o meu tesouro, Tu és o meu tudo”. Exige recordar o que Ele fez por nós e que nenhuma criatura, nem por sombras, poderá fazer o mesmo. Quem se habitua a viver desta forma, a “viver em Deus”, torna-se como Abraão. Torna-se um homem simples, um amigo de Deus. Um homem paciente, ao mesmo tempo humilde e audacioso, capaz de pedir grandes coisas ao Senhor, precisamente porque conhece o Coração do seu Senhor e sabe que o que Ele mais deseja é transformar profundamente o mundo.


domingo, 18 de julho de 2010

Domingo XVI do tempo comum, Ano C

LEITURA I Gen 18, 1-10a

«Senhor, não passeis sem parar em casa do vosso servo»

Leitura do Livro do Génesis
Naqueles dias,
o Senhor apareceu a Abraão junto do carvalho de Mambré.
Abraão estava sentado à entrada da sua tenda,
no maior calor do dia.
Ergueu os olhos e viu três homens de pé diante dele.
Logo que os viu, deixou a entrada da tenda
e correu ao seu encontro;
prostrou-se por terra e disse:
«Meu Senhor, se agradei aos vossos olhos,
não passeis adiante sem parar em casa do vosso servo.
Mandarei vir água, para que possais lavar os pés
e descansar debaixo desta árvore.
Vou buscar um bocado de pão, para restaurardes as forças
antes de continuardes o vosso caminho,
pois não foi em vão que passastes diante da casa do vosso servo».
Eles responderam: «Faz como disseste».
Abraão apressou-se a ir à tenda onde estava Sara e disse-lhe:
«Toma depressa três medidas de flor da farinha,
amassa-a e coze uns pães no borralho».
Abraão correu ao rebanho e escolheu um vitelo tenro e bom
e entregou-o a um servo que se apressou a prepará-lo.
Trouxe manteiga e leite e o vitelo já pronto
e colocou-o diante deles;
e, enquanto comiam, ficou de pé junto deles debaixo da árvore.
Depois eles disseram-lhe:
«Onde está Sara, tua esposa?».
Abraão respondeu: «Está ali na tenda».
E um deles disse:
«Passarei novamente pela tua casa daqui a um ano
e então Sara tua esposa terá um filho».
Palavra do Senhor.

LEITURA II Col 1, 24-28

«O mistério oculto ao longo dos séculos e agora manifestado aos seus santos»

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Colossenses
Irmãos:
Agora alegro-me com os sofrimentos que suporto por vós
e completo na minha carne o que falta à paixão de Cristo,
em benefício do seu corpo que é a Igreja.
Dela me tornei ministro,
em virtude do cargo que Deus me confiou a vosso respeito,
isto é, anunciar em plenitude a palavra de Deus,
o mistério que ficou oculto ao longo dos séculos
e que foi agora manifestado aos seus santos.
Deus quis dar-lhes a conhecer
as riquezas e a glória deste mistério entre os gentios:
Cristo no meio de vós, esperança da glória.
E nós O anunciamos, advertindo todos os homens
e instruindo-os em toda a sabedoria,
a fim de os apresentarmos todos perfeitos em Cristo.
Palavra do Senhor.

EVANGELHO Lc 10, 38-42

«Marta recebeu Jesus em sua casa. Maria escolheu a melhor parte»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus entrou em certa povoação
e uma mulher chamada Marta recebeu-O em sua casa.
Ela tinha uma irmã chamada Maria,
que, sentada aos pés de Jesus,
ouvia a sua palavra.
Entretanto, Marta atarefava-se com muito serviço.
Interveio então e disse:
«Senhor, não Te importas
que minha irmã me deixe sozinha a servir?
Diz-lhe que venha ajudar-me».
O Senhor respondeu-lhe:
«Marta, Marta,
andas inquieta e preocupada com muitas coisas,
quando uma só é necessária.
Maria escolheu a melhor parte,
que não lhe será tirada».
Palavra da salvação.

Homilia do Pe. Antoine Coelho, LC

A liturgia deste domingo fala-nos sobre o modo como Deus quer ser servido. Obviamente não basta querer servir o Senhor, é preciso conhecer o modo justo de o fazer. Com efeito, quando um homem toma a decisão de colaborar com Deus para que se realize a sua Vontade neste mundo, normalmente a sua vontade ainda não se encontra purificada. Detrás da sua boa intenção, pode esconder-se muito amor próprio, o desejo de “brilhar”, de ser apreciado como “amigo de Deus” ou a intenção de encontrar a salvação mais por amor de si mesmo que por amor de Deus.

Tudo isso é muito normal e não devemos sentir-nos mal porque constatamos que existem estas intenções torcidas no coração. O que é importante é pôr-se ao serviço de Deus do modo justo. Esse modo justo irá pouco a pouco purificando a vontade de tal forma que o amor de Deus passe a ser cada vez mais o motivo dos nossos actos e aquilo que efectivamente transmitimos aos outros.

A primeira leitura, do livro do Génesis, oferece-nos elementos interessantes. Apresenta-nos Abraão sentado junto do carvalho de Mambré no calor do dia. Então o Patriarca ergue os olhos e vê três homens de pé diante dele. Compreende que o Senhor veio visitá-lo. Aqui encontramos, dito seja de passo, umas das mais belas prefigurações da Stma Trindade no Antigo Testamento.

Logo que os descortina, Abraão corre ao seu encontro. Esquece o calor do dia, esquece a sua idade avançada, transportado pela alegria de encontrar de novo o Senhor. Aqui temos um elemento importante: quando estamos em presença do Senhor, devemos pôr de lado as nossas preocupações. Assim, é fácil que durante a oração venham à mente os problemas e o Senhor termine por ocupar um segundo lugar. Se não lutarmos sinceramente contra estas distracções e nos deixamos envolver por elas sem grandes resistências, é como se dissessemos a Deus que, no fundo, não acreditamos que é Ele quem pode resolver os nossos problemas existenciais.

Um dos grandes méritos de Abraão é ter acreditado até ao fim, e nas circunstâncias mais adversas, que Deus o cuidaria e seria fiel às suas promessas. Por exemplo, o Patriarca não podia ter filhos porque a sua mulher era estéril, mas não deixa que esta dificudade ocupe o lugar de Deus no seu coração. Por isso, a presente leitura não nos mostra Abraão suplicando o Senhor para que lhe dê um filho. Ocupa-se dos que o visitam. Pede à esposa que lhes prepare pão. Escolhe o melhor vitelo e entrega-o ao servo que se apressou a prepará-lo. Dar o melhor ao Senhor: é o que realmente conta para o Patriarca. O resto fica nas mãos de d’Ele. E, de facto, quando tal atitude se dá, a acção providente de Deus cresce: durante o almoço, Deus promete dar um filho a Sara.

A cena é deveras comovedora. Deus que não precisa de Abraão, nem de aquilo que este lhe pode oferecer, faz-lhe uma visita e quer que este homem o ame e o estime ao modo humano, ou seja, com um banquete. Deus poderia ter perfeitamente desprezado tudo aquilo, mas não: quer entrar na vida dos homens, quase como se fosse um a mais entre eles. O Deus imortal, que tudo criou, come com Abraão! Alimenta-se daquilo que a sua criatura lhe dá! Isso parece não ter lógica, embora na verdade nada seja mais lógico, pois aqui trata-se da lógica do amor. Claro que um Deus assim, tão condescendente, tão disponível, nos leva a sair de nós mesmos, do círculo estreito dos nossos interesses pessoais.

E aqui encontramos de novo alguns elementos importantes para o serviço do Senhor: Deus quer ser servido ao modo humano como Aquele que faz parte do nosso mundo quotidiano. Servir Deus é fazê-lo entrar no nosso dia-a-dia. Se Deus não se tornar “familiar”, se for somente o Deus das grandes ocasiões, das grandes liturgias e não for o Deus a quem dizemos bom dia ao levantarmo-nos, cujo crucifixo beijamos ao sair de casa, se não for Deus que levamos dentro do nosso carro e, quase diria, dentro do nosso bolso, porque aí temos um terço...Se esse Deus só o consultamos nas ocasiões solemnes e esquecemos que Ele quer estar nas nossas pequenas coisas, então algo fundamental falta à nossa vida cristã. Amamos Deus mais como o monarca supremo que tudo governa que como o Pai querido que nos quer dar um beijo quando vamos para a cama. Esse amor não basta...

O Evangelho mostra-nos uma situação interessante. Marta recebe Jesus na sua casa e está ocupada com o serviço. Entretanto, Maria está aos pés do Senhor, ouvindo-O. A primeira vista, parece que Marta está a reproduzir a actitude de Abraão, pois o Patricarca também teve de se ocupar de muitas coisas prácticas para manifestar seu amor ao Senhor. E pareceria que, ao contrário, Maria, sentada ao pé do Senhor está a aproveitar Sua presença.

Mas, a certa altura, Marta queixa-se porque está a trabalhar sozinha, incluso sente algo de ressentimento porque Cristo não lhe diz a Maria que ajude sua irmã. A resposta do Senhor não deixa lugar a dúvidas: prefere a actitude de Maria. Significa isso em Jesus um certo desprezo às formas mais prácticas de serviço em favor de um certo espiritualismo? Certamente que não. Maria tem a alma aberta e se alimenta de Deus: ela, na verdade, está a servi-Lo. A forma mais alta de servir e de amar a Deus é deixar-se servir e amar por Ele. A partir daqui brota todo empenho concreto e pessoal por servi-Lo e amá-Lo. A partir daqui é possível depois servi-lo e amá-lo com autenticidade. Voltando ao episódio de Abraão: contrariamente às aparências, o que de mais importante realizou o Patriarca foi, depois de ter preparado a comida, o facto de ter permanecido de pé ao lado do Senhor.

Marta, que, segundo uma mirada superficial, pareceria muito generosa, no fim de contas, está mais preocupada com o serviço que com o Senhor a quem serve. Ela não está realmente a servi-Lo. Sem sabê-lo, está a servir-se a si mesma. Possivelmente importa-lhe muito que lhe digam depois que tudo correu bem, que tudo estava bem preparado, que ela é uma ama de casa exemplar.

Assim, em conclusão, vemos que servir Deus implica pô-lo ao centro de tudo, pondo de lado ocupações e preocupações secundárias, é fazê-lo entrar em todos os aspectos da nossa vida, fazer que Ele partilhe todas as dimensões da nossa vida humana. Mas deixando-lhes sempre as rédeas da mesma. Sim, hemos de recordar sempre que servir o Amor é antes de tudo, deixá-lo amar-nos, e responder-lhe com o amor que Ele nos dá.

sábado, 10 de julho de 2010

Domingo XV do tempo comum, Ano C

LEITURA I Deut 30, 10-14

«Esta palavra está perto de ti, para que a possas pôr em prática»

Leitura do Livro do Deuteronómio
Moisés falou ao povo, dizendo:
«Escutarás a voz do Senhor teu Deus,
cumprindo os seus preceitos e mandamentos
que estão escritos no Livro da Lei,
e converter-te-ás ao Senhor teu Deus
com todo o teu coração e com toda a tua alma.
Este mandamento que hoje te imponho
não está acima das tuas forças nem fora do teu alcance.
Não está no céu, para que precises de dizer:
‘Quem irá por nós subir ao céu,
para no-lo buscar e fazer ouvir,
a fim de o pormos em prática?’.
Não está para além dos mares,
para que precises de dizer:
‘Quem irá por nós transpor os mares,
para no-lo buscar e fazer ouvir,
a fim de o pormos em prática?’.
Esta palavra está perto de ti,
está na tua boca e no teu coração,
para que a possas pôr em prática».
Palavra do Senhor.


LEITURA II Col 1, 15-20

«Por Ele e por Ele tudo foi criado»

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Colossenses
Cristo Jesus é a imagem de Deus invisível,
o Primogénito de toda a criatura;
porque n’Ele foram criadas todas as coisas
no céu e na terra, visíveis e invisíveis,
Tronos e Dominações, Principados e Potestades:
por Ele e para Ele tudo foi criado.
Ele é anterior a todas as coisas
e n’Ele tudo subsiste.
Ele é a cabeça da Igreja, que é o seu corpo.
Ele é o Princípio, o Primogénito de entre os mortos;
em tudo Ele tem o primeiro lugar.
Aprouve a Deus que n’Ele residisse toda a plenitude
e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas,
estabelecendo a paz, pelo sangue da sua cruz,
com todas as criaturas na terra e nos céus.
Palavra do Senhor.


EVANGELHO Lc 10, 25-37

«Quem é o meu próximo?»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
levantou-se um doutor da lei
e perguntou a Jesus para O experimentar:
«Mestre,
que hei-de fazer para receber como herança a vida eterna?»
Jesus disse-lhe:
«Que está escrito na lei? Como lês tu?»
Ele respondeu:
«Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração e com toda a tua alma,
com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento;
e ao próximo como a ti mesmo».
Disse-lhe Jesus:
«Respondeste bem. Faz isso e viverás».
Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus:
«E quem é o meu próximo?»
Jesus, tomando a palavra, disse:
«Um homem descia de Jerusalém para Jericó
e caiu nas mãos dos salteadores.
Roubaram-lhe tudo o que levava, espancaram-no
e foram-se embora, deixando-o meio morto.
Por coincidência, descia pelo mesmo caminho um sacerdote;
viu-o e passou adiante.
Do mesmo modo, um levita que vinha por aquele lugar,
viu-o e passou também adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem,
passou junto dele e, ao vê-lo, encheu-se de compaixão.
Aproximou-se, ligou-lhe as feridas deitando azeite e vinho,
colocou-o sobre a sua própria montada,
levou-o para uma estalagem e cuidou dele.
No dia seguinte, tirou duas moedas,
deu-as ao estalajadeiro e disse:
‘Trata bem dele; e o que gastares a mais
eu to pagarei quando voltar’.
Qual destes três te parece ter sido o próximo
daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?»
O doutor da lei respondeu:
«O que teve compaixão dele».
Disse-lhe Jesus:
Então vai e faz o mesmo».
Palavra da salvação.


Homilia do Pe. Antoine Coelho, LC

Qual é a lei de Deus? O que devemos fazer para lhe agradar e para comportar-nos de forma divina? Outro modo de formular esta pergunta seria: o que devo fazer para realizar-me como homem e chegar à plenitude da felicidade?

Tudo isso estava contido de algum modo na pergunta que o doutor da lei dirigiu ao Senhor: “Mestre que hei-de fazer para receber como herança a vida eterna?” Cristo então devolve-lhe a pergunta com outra pergunta: “o que lês na lei?” A resposta é o amor: “Amarás o Senhor tu Deus com todo o coração e com toda a tua alma, com todas as tuas forças e como todo o teu entendimento; e ao próximo como a ti mesmo”.

Esta resposta, depois de mais de dois mil anos de cristianismo, parece-nos óbvia. Estamos acostumados a viver numa cultura impregnada pelo Evangelho e, por isso, não sempre percebemos o conteúdo revolucionário da mesma. O facto é que no próprio mundo judeu não existia unanimidade sobre esta questão. Com facilidade, o crente podia perder-se entre os mais de 650 preceitos da Lei. As repetidas críticas de Jesus aos fariseus, evidenciando que tinham esquecido o essencial da Lei, mostram precisamente isso.

Entre os pagãos, a confusão era total. Basta pensar no panteão greco-romano, com deuses a assumirem comportamentos não só imorais, mas inclusive abomináveis, como o caso de Cronos que devorava os próprios filhos. Por outro lado, as infidelidades conjugais do Zeus não se contavam. Se ser divino significava ter atitudes profundamente egoístas, o que se podia esperar dos homens? Como explicar-lhes que o amor até ao sacrifício de si mesmo era o único caminho digno de um homem?

Nestas condições, não admira a descrição que faz São Paulo do mundo pagão na Epístola aos Romanos. As expressões do Apóstolo são muito fortes: Como abandonaram Deus, “Deus abandonou-os às suas paixões infames; as suas mulheres mudaram as relações naturais em relações contra a natureza. De igual modo, os homens...Deus abandonou-os aos caprichos de sua inteligência depravada, de modo que cometeram o que era indigno, repletos de todo tipo injustiça, malícia, cupidez, cheios de inveja, de homocídio, de rivalidades, de fraudes, difamadores, maldizentes...”

Às vezes ouvem-se certas vozes falarem com certa nostalgia do mundo pagão, onde o homem tinha a liberdade de ter os seus próprios deuses, antes da imposição autoritária do monoteismo cristão. Vê-se que quem fala assim nunca viveu no mundo pagão, nem é muito documentado ao respeito. Não se dá conta que o panteão dos deuses era um verdadeiro regime de terror, onde proliferavam todo tipo de práticas esotéricas com o objectivo de enviar malefícios sobre terceiros. E quem podia proteger o homem contra isso, contra os caprichos dos espíritos malignos? Onde estavam os sacerdotes que podiam praticar libertações e exorcismos? Sim, os homens eram extremamente vulneráveis às potências diabólicas.

O que o Evangelho de hoje nos apresenta é totalmente diverso, é uma brisa fresca no meio de um deserto de egoísmo, com poucos oásis, onde estavam imersos os homens daquele tempo. Cristo dá aos homens a certeza absoluta sobre o bom caminho, mostrando que precisamente não existe outro caminho que o do amor. Todos os outros caminhos levam ao precipício e, por isso, são mais amardilhas que caminhos propiamente ditos. Mesmo se alguns judeus especialmente sensíveis podiam discernir a estrada justa, outra limitação se erguia do qual nos fala este Evangelho. O Mestre da Lei em questão sabia que devia amar o próximo, mas a pergunta que se punha era: “quem é o meu próximo”? Intermináveis discussões nasciam entre os doutores ao respeito disso. Cristo não quer meter-se nisso, então conta uma história. Sai do plano teórico onde somos campeões para encontrar desculpas e mostra um caso concreto que toca o coração e permite à mente discernir o que é justo.

Trata-se da parábola do Bom Samaritano. Um homem foi assaltado e jaz moribundo. A sua vida está realmente em perigo. Talvez uma mulher e numerosos filhos dependam dele. O sacerdote passa ao lado e não quer tocá-lo porque este homem ferido pode torná-lo impuro para o culto. Aqui está o exemplo de uma lei humana, usada para o culto, que tomava tristemente o lugar da Lei divina do amor. Um levita actua da mesma forma, pelas mesmas razões. Quem o ajuda, então? Um samaritano, ou seja, um homem desprezado pelo povo judeu, seguro de ser mais justo que os infiéis de Samaria. O Samaritano enche-se de compaixão, cura-o, deixa-o em cima da sua própria montada, paga-lhe um quarto numa estalagem e está disposto a pagar mais se tiver necessidade de ficar mais dias.

Tal descrição toca o coração de todos os ouvintes de Cristo. Não podem não reconhecer que este é o caminho e que quem se detém a investigar a identidade, a raça, o povo, do homem ferido não se comporta de forma digna de um homem. Mas a questão que põe Cristo surpreende no fim da narração. Em vez de perguntar se, no fim de contas, o homem ferido era ou não o próximo independentemente das suas origens, pergunta qual dos três homens – o levita, o sacerdote ou o samaritano – foi o próximo do ferido. Desloca a questão. É como se dissesse: o verdadeiro problema não é saber quem é o meu próximo, porque todos os homens são os nossos próximos; isso é evidente. O problema é aceitar esta verdade e tornar-se próximo dos outros, fazer o esforço de ir ao encontro deles. Na verdade, mais que “fazer o esforço” de ir ao encontro, trata-se de deixar que o coração se encha de compaixão, de deixar-se interpelar pelo outro que necessita a minha ajuda, de olhar para ele, não como se fosse um objeto, um instrumento, uma oportunidade, mas vendo-o como o que ele é: uma pessoa.

Esta é a novidade que trouxe Cristo: o princípio do amor liberado dos limites do egoísmo humano. Mas não só. Este princípio não passaria de ser uma bela utopia, uma especie “marxismo religioso”, se Deus não se tivesse encarnado e se Ele não o tivesse vivido. A grande novidade é que Deus veio à terra para amar ao modo humano e para assim divinizar o amor humano com a força do Espírito Santo. Por isso, alguns padres da Igreja interpretaram a figura do Bom Samaritano, como referida a Cristo. Cristo é o Bom Samaritano, aquelo que não só se limita a ajudar, mas paga do seu próprio bolso. Com Cristo, definitivamente, Deus não pode ser mais Zeus. Não pode ser um poder transcendente para o qual, na melhor das hipóteses, o homem apresenta algum interesse. Com Cristo, Deus é Pai, irmão, amigo e esposo da alma; é uma realidade tão plena e rica que condensa todos os tipos de amor e sacia infinitamente a nossa fome de amor. E sempre ficamos com a sensação que o que lhe damos a Deus fica muito abaixo de aquilo que nos oferece.

Mas não devemos limitar-nos a contemplar a figura divina de Cristo com admiração, como um ideal próprio da esfera divina, mas inatingível para nós. Cristo, o verdadeiro Bom Samaritano, não dá umas quantas moedas para que nos curemos. Dá-se em alimento pela Eucaristia, vive nos nossos corações com seu Espírito de Amor, de modo que todos nós, transfigurados interiormente, possamos tornar-nos bons samaritanos. E isso acontecerá certamente, na medida da nossa fé, na medida em que estivermos dispostos a deixar-nos interpelar, com coração orante, pela única realidade essencial da vida, que dá sentido a todas as outras.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Domingo XIV do tempo comum, Ano C

LEITURA I Is 66, 10-14c
 

«Farei correr para Jerusalém a paz como um rio»

Leitura do Livro de Isaías
Alegrai-vos com Jerusalém,
exultai com ela, todos vós que a amais.
Com ela enchei-vos de júbilo,
todos vós que participastes no seu luto.
Assim podereis beber e saciar-vos
com o leite das suas consolações,
podereis deliciar-vos no seio da sua magnificência.
Porque assim fala o Senhor:
«Farei correr para Jerusalém a paz como um rio
e a riqueza das nações como torrente transbordante.
Os seus meninos de peito serão levados ao colo
e acariciados sobre os joelhos.
Como a mãe que anima o seu filho,
também Eu vos confortarei:
em Jerusalém sereis consolados.
Quando o virdes, alegrar-se-á o vosso coração
e, como a verdura, retomarão vigor os vossos membros.
A mão do Senhor manifestar-se-á aos seus servos».
Palavra do Senhor.

LEITURA II Gal 6, 14-18

«Por Ele o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo»

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Gálatas
Irmãos:
Longe de mim gloriar-me,
a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo,
pela qual o mundo está crucificado para mim
e eu para o mundo.
Pois nem a circuncisão nem a incircuncisão valem alguma coisa:
o que tem valor é a nova criatura.
Paz e misericórdia para quantos seguirem esta norma,
bem como para o Israel de Deus.
Doravante ninguém me importune,
porque eu trago no meu corpo os estigmas de Jesus.
Irmãos, a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo
esteja com o vosso espírito. Amen.
Palavra do Senhor.

EVANGELHO Lc 10, 1-12.17-20

«A vossa paz repousará sobre eles»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
designou o Senhor setenta e dois discípulos
e enviou-os dois a dois à sua frente,
a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir.
E dizia-lhes:
«A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos.
Pedi ao dono da seara
que mande trabalhadores para a sua seara.
Ide: Eu vos envio como cordeiros para o meio de lobos.
Não leveis bolsa nem alforge nem sandálias,
nem vos demoreis a saudar alguém pelo caminho.
Quando entrardes nalguma casa,
dizei primeiro: ‘Paz a esta casa’.
E se lá houver gente de paz,
a vossa paz repousará sobre eles;
senão, ficará convosco.
Ficai nessa casa, comei e bebei do que tiverem,
que o trabalhador merece o seu salário.
Não andeis de casa em casa.
Quando entrardes nalguma cidade e vos receberem,
comei do que vos servirem,
curai os enfermos que nela houver
e dizei-lhes: ‘Está perto de vós o reino de Deus’.
Mas quando entrardes nalguma cidade e não vos receberem,
saí à praça pública e dizei:
‘Até o pó da vossa cidade que se pegou aos nossos pés
sacudimos para vós.
No entanto, ficai sabendo:
Está perto o reino de Deus’.
Eu vos digo:
Haverá mais tolerância, naquele dia, para Sodoma
do que para essa cidade».
Os setenta e dois discípulos voltaram cheios de alegria, dizendo:
«Senhor, até os demónios nos obedeciam em teu nome».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago.
Dei-vos o poder de pisar serpentes e escorpiões
e dominar toda a força do inimigo;
nada poderá causar-vos dano.
Contudo, não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem;
alegrai-vos antes
porque os vossos nomes estão escritos nos Céus».
Palavra da salvação.


Homilia do Pe. Antoine Coelho, LC


Quando lemos o Evangelho deste domingo, em que Cristo envia os 72 discípulos para anunciar a vinda do Senhor, sempre ficamos estupefactos com a simplicidade e com a força de graça que caracterizam esta missão.

Não devem levar nem bolsa, nem alforge, nem sandálias...O importante é que cristo seja levado, e no coração. Tampouco devem demorar-se durante o caminho a saudar as pessoas, a fim de evitarem a dispersão. A missão deve absorver as suas energias, para que seja eficaz, e não conversas de outra índole. É estranho também que, por um lado, Cristo avisa que são enviados como ovelhas no meio de lobos e, que por outro, parece não dar-lhes nenhum meio de defesa.

Na verdade, esta primeira missão deve servir de modelo para todas as futuras missões da história junto dos nossos irmãos que não conhecem ou que conhecem pouco o Senhor. Os meios humanos contam pouco aos olhos de Cristo. Claro: eles têm a sua parte, mas uma leitura sincera do texto mostra com toda a clareza que Cristo parece rebaixá-los o mais que pode. Todo o sucesso da missão deve repousar no poder de Deus, que os apóstolos devem levar no seu interior como frágeis vasos humanos.

Por isso, evangelizar é, por um lado, o que existe de mais fácil no mundo e, ao mesmo tempo, o que existe de mais difícil. Para quem tem realmente Deus no coração, porque vive para Deus, trata-se de uma actividade tão natural como respirar. Mas aí está: é preciso viver para Deus. Quem ainda não vive para Deus poderá mexer-se à direita e à esquerda, fazer muitas coisas, levantar muito pó, pensar e pensar e pensar para encontrar caminhos de evangelização, tudo será inútil. Conseguirá uns quantos resultados, mas tudo será ainda muito humano e, por isso, escasso. Faria melhor de se mexer menos e rezar mais, contemplar mais, pedir a Deus que lhe indique as vias para a evangelização, e aprender a desprender-se das coisitas fúteis que nos rodeiam. Como pode pensar ajudar os seus irmãos a vencer os ídolos do mundo, quando estes ainda vivem no seu coração?

Por isso, é tão importante, ao meu ver, meditar sobre estas palavras de Paulo na primeira carta aos Coríntios: “não os anunciei Cristo com a sabeduria dos homens, mas com Espírito Santo e com poder”. A sabeduria dos homens, ou seja, os meios humanos, não são decisivos, mas a acção de Deus através do instrumento humano. Um exemplo mais perto de nós é São Paulo da cruz, fundador dos passionistas, junto com outros companheiros. Como fazia ele e os seus companheiros para evangelizar? Nada mais simples. No monte Argentario, em Itália, oravam intensamente e viviam desprendidos das coisas mundanas. Ao descerem às cidades para anunciar Cristo, as suas missões eram sempre um sucesso imparável, pois o Espírito Santo e o poder de Deus os acompanhava de forma palpável.

A esta luz, também, podemos entender as afirmações de São Paulo na segunda leitura: “longe de mim gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo. Pois nem a circuncisão nem a incircuncisão valem alguma coisa: o que tem valor é a nova criatura”. Por outras palavras, o que conta aos olhos de Deus não são as tradições humanas, as acções, a circuncisão ou a incircuncisão. Certamente têm o seu valor, mas o decisivo é a “nova criatura”, ou seja, é a transformação interior do homem, pela qual do seu coração brotam rios de água viva, que são uma imagem do Espírito Santo derramado por Deus sem medida quando encontra uma alma crucificada.

Voltando ao Evangelho, nele Cristo indica o conteúdo básico do anúncio. Será algo complicado, algo que necessite um grande conhecimento da doutrina? Nem por sombras. Devem saúdar primeiro com estas palavras: “paz a esta casa”. E depois anunciar que: “o Reino de Deus está perto de vós”. Evangelizar significa fundamentalmente, segundo esta perspectiva, transmitir a paz de Cristo e mostrar a proximidade do Reino de Deus, ou seja, mostrar que Deus está perto de nós e está a actuar. Por isso, o mais importante para os evangelizadores é serem interiormente transformados por Deus, estar cheios de sua paz, para que, quem os veja, veja Deus.

Numa viagem de avião, certa vez, encontrei um jovem brasileiro que se sentou ao meu lado. Sem dúvida, tratava-se de uma pessa de boa vontade, com muitas qualidades e sinceros desejos de fazer o bem. Tinha, no entanto, muitas dúvidas de fé. Contou-me também experiências esotéricas, nas quais parecia manifestar-se a presença de grandes poderes. Então falei da minha experiência religiosa e como a fé em Cristo tinha-me enchido o coração de paz. Abriu muito os olhos. A paz! Vira muita coisa impressante e emocionante na esfera religiosa, mas algo que nunca achara fora a paz. Então começou a despontar nele um novo interesse pela fé, ao ponto que no fim da viagem tinha tomado a resolução de buscar um sacerdote na sua cidade natal, que lhe pudesse ensinar este “caminho da paz”.

Sim: a paz é uma realidade que somente Deus pode transmitir. Quando ela falta nas nossas vidas, é porque nos falta Deus. E onde ela falta, a nossa capacidade evangelizadora encontra-se bastante comprometida. Se, como nos ensina Cristo, parte essencial da nossa missão é dar a paz! Como damos o que não possuimos?

Obviamente, é de grande importância, conhecer com profundidade a sua fé, ter conteúdos para transmitir. Isso ajuda muito, muitíssimo até. Mas não nos enganemos: não é nisso que reside o essencial da força apostólica. Não é por acaso que Cristo, ao retornarem dos discípulos da missão, confia-lhes essa verdade: “Eu via Satanás cair do céu como um relâmpago. Dei-vos poder de pisar serpentes e escorpiões e dominar toda a força do inimigo”.

Detrás do cenário em que se moviam os enviados e em que exortavam os seus ouvintes existia outra realidade, a de um combate invisível, espiritual contra as forças do mal. São elas realmente que “tapam” os corações, que os cubrem com trevas que não lhes deixa enxergar com lucidez a verdade de Deus, enchendo-os de medo, de cepticismo e de falsas desculpas para não ser generosos com Deus. Somente o vento de Deus pode afastar estas nuvens. Às vezes podemos centrar a nossa atenção na boa organização da actividade apostólica, no nosso trabalho pessoal de promoção de eventos, na nosso metodologia professional, na capacidade de eloquência, etc., como se estas fossem as chaves que abrem os corações. Embora estes elementos sejam necessários, é bom recordar que é Deus, só Deus, a livrar-nos do mal e que se não conseguimos, por Ele, uma vitória espiritual contra as forças do mal, estamos a “dar golpes no ar”.

Fundar a nossa vida em Deus e na oração é mais que nunca urgente. A Igreja viveu horas realmente amargas neste ano sacerdotal e elas ainda não passaram. Seguindo a lógica humana, diriamos que a missão deveria ficar congelada por um tempo. No entanto, desde a oração, Deus sussura incomprensivelmente no nosso coração o que encontramos na primeira leitura, do profeta Isaías: “Alegrai-vos com Jerusalém, exultai com ela, todos vós que a amais [...] Porque assim fala o Senhor. Farei correr para Jerusalém a paz como um rio e a riqueza das nações como torrente transbordante. Como a mãe que anima o seu filho, também Eu vos confortarei: em Jerusalém sereis consolados”. Alegremo-nos, sim, porque tal como a dois mil anos Cristo vai connosco na missão e dá, a todos os que acreditam n’Ele e fundem n’Ele toda a sua força, “o poder de pisar serpentes e escorpiões e dominar toda a força do inimigo”.