sábado, 10 de julho de 2010

Domingo XV do tempo comum, Ano C

LEITURA I Deut 30, 10-14

«Esta palavra está perto de ti, para que a possas pôr em prática»

Leitura do Livro do Deuteronómio
Moisés falou ao povo, dizendo:
«Escutarás a voz do Senhor teu Deus,
cumprindo os seus preceitos e mandamentos
que estão escritos no Livro da Lei,
e converter-te-ás ao Senhor teu Deus
com todo o teu coração e com toda a tua alma.
Este mandamento que hoje te imponho
não está acima das tuas forças nem fora do teu alcance.
Não está no céu, para que precises de dizer:
‘Quem irá por nós subir ao céu,
para no-lo buscar e fazer ouvir,
a fim de o pormos em prática?’.
Não está para além dos mares,
para que precises de dizer:
‘Quem irá por nós transpor os mares,
para no-lo buscar e fazer ouvir,
a fim de o pormos em prática?’.
Esta palavra está perto de ti,
está na tua boca e no teu coração,
para que a possas pôr em prática».
Palavra do Senhor.


LEITURA II Col 1, 15-20

«Por Ele e por Ele tudo foi criado»

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Colossenses
Cristo Jesus é a imagem de Deus invisível,
o Primogénito de toda a criatura;
porque n’Ele foram criadas todas as coisas
no céu e na terra, visíveis e invisíveis,
Tronos e Dominações, Principados e Potestades:
por Ele e para Ele tudo foi criado.
Ele é anterior a todas as coisas
e n’Ele tudo subsiste.
Ele é a cabeça da Igreja, que é o seu corpo.
Ele é o Princípio, o Primogénito de entre os mortos;
em tudo Ele tem o primeiro lugar.
Aprouve a Deus que n’Ele residisse toda a plenitude
e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas,
estabelecendo a paz, pelo sangue da sua cruz,
com todas as criaturas na terra e nos céus.
Palavra do Senhor.


EVANGELHO Lc 10, 25-37

«Quem é o meu próximo?»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
levantou-se um doutor da lei
e perguntou a Jesus para O experimentar:
«Mestre,
que hei-de fazer para receber como herança a vida eterna?»
Jesus disse-lhe:
«Que está escrito na lei? Como lês tu?»
Ele respondeu:
«Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração e com toda a tua alma,
com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento;
e ao próximo como a ti mesmo».
Disse-lhe Jesus:
«Respondeste bem. Faz isso e viverás».
Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus:
«E quem é o meu próximo?»
Jesus, tomando a palavra, disse:
«Um homem descia de Jerusalém para Jericó
e caiu nas mãos dos salteadores.
Roubaram-lhe tudo o que levava, espancaram-no
e foram-se embora, deixando-o meio morto.
Por coincidência, descia pelo mesmo caminho um sacerdote;
viu-o e passou adiante.
Do mesmo modo, um levita que vinha por aquele lugar,
viu-o e passou também adiante.
Mas um samaritano, que ia de viagem,
passou junto dele e, ao vê-lo, encheu-se de compaixão.
Aproximou-se, ligou-lhe as feridas deitando azeite e vinho,
colocou-o sobre a sua própria montada,
levou-o para uma estalagem e cuidou dele.
No dia seguinte, tirou duas moedas,
deu-as ao estalajadeiro e disse:
‘Trata bem dele; e o que gastares a mais
eu to pagarei quando voltar’.
Qual destes três te parece ter sido o próximo
daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?»
O doutor da lei respondeu:
«O que teve compaixão dele».
Disse-lhe Jesus:
Então vai e faz o mesmo».
Palavra da salvação.


Homilia do Pe. Antoine Coelho, LC

Qual é a lei de Deus? O que devemos fazer para lhe agradar e para comportar-nos de forma divina? Outro modo de formular esta pergunta seria: o que devo fazer para realizar-me como homem e chegar à plenitude da felicidade?

Tudo isso estava contido de algum modo na pergunta que o doutor da lei dirigiu ao Senhor: “Mestre que hei-de fazer para receber como herança a vida eterna?” Cristo então devolve-lhe a pergunta com outra pergunta: “o que lês na lei?” A resposta é o amor: “Amarás o Senhor tu Deus com todo o coração e com toda a tua alma, com todas as tuas forças e como todo o teu entendimento; e ao próximo como a ti mesmo”.

Esta resposta, depois de mais de dois mil anos de cristianismo, parece-nos óbvia. Estamos acostumados a viver numa cultura impregnada pelo Evangelho e, por isso, não sempre percebemos o conteúdo revolucionário da mesma. O facto é que no próprio mundo judeu não existia unanimidade sobre esta questão. Com facilidade, o crente podia perder-se entre os mais de 650 preceitos da Lei. As repetidas críticas de Jesus aos fariseus, evidenciando que tinham esquecido o essencial da Lei, mostram precisamente isso.

Entre os pagãos, a confusão era total. Basta pensar no panteão greco-romano, com deuses a assumirem comportamentos não só imorais, mas inclusive abomináveis, como o caso de Cronos que devorava os próprios filhos. Por outro lado, as infidelidades conjugais do Zeus não se contavam. Se ser divino significava ter atitudes profundamente egoístas, o que se podia esperar dos homens? Como explicar-lhes que o amor até ao sacrifício de si mesmo era o único caminho digno de um homem?

Nestas condições, não admira a descrição que faz São Paulo do mundo pagão na Epístola aos Romanos. As expressões do Apóstolo são muito fortes: Como abandonaram Deus, “Deus abandonou-os às suas paixões infames; as suas mulheres mudaram as relações naturais em relações contra a natureza. De igual modo, os homens...Deus abandonou-os aos caprichos de sua inteligência depravada, de modo que cometeram o que era indigno, repletos de todo tipo injustiça, malícia, cupidez, cheios de inveja, de homocídio, de rivalidades, de fraudes, difamadores, maldizentes...”

Às vezes ouvem-se certas vozes falarem com certa nostalgia do mundo pagão, onde o homem tinha a liberdade de ter os seus próprios deuses, antes da imposição autoritária do monoteismo cristão. Vê-se que quem fala assim nunca viveu no mundo pagão, nem é muito documentado ao respeito. Não se dá conta que o panteão dos deuses era um verdadeiro regime de terror, onde proliferavam todo tipo de práticas esotéricas com o objectivo de enviar malefícios sobre terceiros. E quem podia proteger o homem contra isso, contra os caprichos dos espíritos malignos? Onde estavam os sacerdotes que podiam praticar libertações e exorcismos? Sim, os homens eram extremamente vulneráveis às potências diabólicas.

O que o Evangelho de hoje nos apresenta é totalmente diverso, é uma brisa fresca no meio de um deserto de egoísmo, com poucos oásis, onde estavam imersos os homens daquele tempo. Cristo dá aos homens a certeza absoluta sobre o bom caminho, mostrando que precisamente não existe outro caminho que o do amor. Todos os outros caminhos levam ao precipício e, por isso, são mais amardilhas que caminhos propiamente ditos. Mesmo se alguns judeus especialmente sensíveis podiam discernir a estrada justa, outra limitação se erguia do qual nos fala este Evangelho. O Mestre da Lei em questão sabia que devia amar o próximo, mas a pergunta que se punha era: “quem é o meu próximo”? Intermináveis discussões nasciam entre os doutores ao respeito disso. Cristo não quer meter-se nisso, então conta uma história. Sai do plano teórico onde somos campeões para encontrar desculpas e mostra um caso concreto que toca o coração e permite à mente discernir o que é justo.

Trata-se da parábola do Bom Samaritano. Um homem foi assaltado e jaz moribundo. A sua vida está realmente em perigo. Talvez uma mulher e numerosos filhos dependam dele. O sacerdote passa ao lado e não quer tocá-lo porque este homem ferido pode torná-lo impuro para o culto. Aqui está o exemplo de uma lei humana, usada para o culto, que tomava tristemente o lugar da Lei divina do amor. Um levita actua da mesma forma, pelas mesmas razões. Quem o ajuda, então? Um samaritano, ou seja, um homem desprezado pelo povo judeu, seguro de ser mais justo que os infiéis de Samaria. O Samaritano enche-se de compaixão, cura-o, deixa-o em cima da sua própria montada, paga-lhe um quarto numa estalagem e está disposto a pagar mais se tiver necessidade de ficar mais dias.

Tal descrição toca o coração de todos os ouvintes de Cristo. Não podem não reconhecer que este é o caminho e que quem se detém a investigar a identidade, a raça, o povo, do homem ferido não se comporta de forma digna de um homem. Mas a questão que põe Cristo surpreende no fim da narração. Em vez de perguntar se, no fim de contas, o homem ferido era ou não o próximo independentemente das suas origens, pergunta qual dos três homens – o levita, o sacerdote ou o samaritano – foi o próximo do ferido. Desloca a questão. É como se dissesse: o verdadeiro problema não é saber quem é o meu próximo, porque todos os homens são os nossos próximos; isso é evidente. O problema é aceitar esta verdade e tornar-se próximo dos outros, fazer o esforço de ir ao encontro deles. Na verdade, mais que “fazer o esforço” de ir ao encontro, trata-se de deixar que o coração se encha de compaixão, de deixar-se interpelar pelo outro que necessita a minha ajuda, de olhar para ele, não como se fosse um objeto, um instrumento, uma oportunidade, mas vendo-o como o que ele é: uma pessoa.

Esta é a novidade que trouxe Cristo: o princípio do amor liberado dos limites do egoísmo humano. Mas não só. Este princípio não passaria de ser uma bela utopia, uma especie “marxismo religioso”, se Deus não se tivesse encarnado e se Ele não o tivesse vivido. A grande novidade é que Deus veio à terra para amar ao modo humano e para assim divinizar o amor humano com a força do Espírito Santo. Por isso, alguns padres da Igreja interpretaram a figura do Bom Samaritano, como referida a Cristo. Cristo é o Bom Samaritano, aquelo que não só se limita a ajudar, mas paga do seu próprio bolso. Com Cristo, definitivamente, Deus não pode ser mais Zeus. Não pode ser um poder transcendente para o qual, na melhor das hipóteses, o homem apresenta algum interesse. Com Cristo, Deus é Pai, irmão, amigo e esposo da alma; é uma realidade tão plena e rica que condensa todos os tipos de amor e sacia infinitamente a nossa fome de amor. E sempre ficamos com a sensação que o que lhe damos a Deus fica muito abaixo de aquilo que nos oferece.

Mas não devemos limitar-nos a contemplar a figura divina de Cristo com admiração, como um ideal próprio da esfera divina, mas inatingível para nós. Cristo, o verdadeiro Bom Samaritano, não dá umas quantas moedas para que nos curemos. Dá-se em alimento pela Eucaristia, vive nos nossos corações com seu Espírito de Amor, de modo que todos nós, transfigurados interiormente, possamos tornar-nos bons samaritanos. E isso acontecerá certamente, na medida da nossa fé, na medida em que estivermos dispostos a deixar-nos interpelar, com coração orante, pela única realidade essencial da vida, que dá sentido a todas as outras.

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