quinta-feira, 18 de março de 2010

Domingo V da Quaresma, Ano C

LEITURA I Is 43, 16-21

«Vou realizar uma coisa nova: matarei a sede ao meu povo»

Leitura do Livro de Isaías
O Senhor abriu outrora caminhos através do mar,
veredas por entre as torrentes das águas.
Pôs em campanha carros e cavalos,
um exército de valentes guerreiros;
e todos caíram para não mais se levantarem,
extinguiram-se como um pavio que se apaga.
Eis o que diz o Senhor:
«Não vos lembreis mais dos acontecimentos passados,
não presteis atenção às coisas antigas.
Olhai: vou realizar uma coisa nova,
que já começa a aparecer; não a vedes?
Vou abrir um caminho no deserto,
fazer brotar rios na terra árida.
Os animais selvagens __ chacais e avestruzes __
proclamarão a minha glória,
porque farei brotar água no deserto,
rios na terra árida,
para matar a sede ao meu povo escolhido,
o povo que formei para Mim
e que proclamará os meus louvores».
Palavra do Senhor.


LEITURA II Filip 3, 8-14

«Por Cristo, considerei todas as coisas como prejuízo, configurando-me à sua morte»

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Filipenses
Irmãos:
Considero todas as coisas como prejuízo,
comparando-as com o bem supremo,
que é conhecer Jesus Cristo, meu Senhor.
Por Ele renunciei a todas as coisas
e considerei tudo como lixo,
para ganhar a Cristo
e n’Ele me encontrar,
não com a minha justiça que vem da Lei,
mas com a que se recebe pela fé em Cristo,
a justiça que vem de Deus e se funda na fé.
Assim poderei conhecer Cristo,
o poder da sua ressurreição
e a participação nos seus sofrimentos,
configurando-me à sua morte,
para ver se posso chegar à ressurreição dos mortos.
Não que eu tenha já chegado à meta,
ou já tenha atingido a perfeição.
Mas continuo a correr, para ver se a alcanço,
uma vez que também fui alcançado por Cristo Jesus.
Não penso, irmãos, que já o tenha conseguido.
Só penso numa coisa:
esquecendo o que fica para trás,
lançar-me para a frente, continuar a correr para a meta,
em vista do prémio a que Deus, lá do alto,
me chama em Cristo Jesus.
Palavra do Senhor.

EVANGELHO Jo 8, 1-11

«Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
Naquele tempo,
Jesus foi para o Monte das Oliveiras.
Mas de manhã cedo, apareceu outra vez no templo
e todo o povo se aproximou d’Ele.
Então sentou-Se e começou a ensinar.
Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus
uma mulher surpreendida em adultério,
colocaram-na no meio dos presentes e disseram a Jesus:
«Mestre, esta mulher foi surpreendida em flagrante adultério.
Na Lei, Moisés mandou-nos apedrejar tais mulheres.
Tu que dizes?».
Falavam assim para Lhe armarem uma cilada
e terem pretexto para O acusar.
Mas Jesus inclinou-Se
e começou a escrever com o dedo no chão.
Como persistiam em interrogá-l’O,
ergueu-Se e disse-lhes:
«Quem de entre vós estiver sem pecado
atire a primeira pedra».
Inclinou-Se novamente e continuou a escrever no chão.
Eles, porém, quando ouviram tais palavras,
foram saindo um após outro, a começar pelos mais velhos,
e ficou só Jesus e a mulher, que estava no meio.
Jesus ergueu-Se e disse-lhe:
«Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?».
Ela respondeu: «Ninguém, Senhor».
Disse então Jesus:
«Nem Eu te condeno.
Vai e não tornes a pecar».
Palavra da salvação.

Homilia Pe. Antoine Coelho, LC
Domingo V da Quaresma

Isaías, na primeira leitura deste domingo, mostra-nos com a eloquência que o caracteriza como o Senhor, no passado, realizou grandes coisas pelos judeus. Salvou-os da morte, da escravidão e dos seus inimigos. A imagem fundamental com a que se quer simbolizar esta salvação é o caminho através do mar, o qual, como sabemos, representa a morte, no mundo bíblico. Os egípcios ficaram sepultados debaixo das águas. Graças à intervenção de Deus, o que causou a morte aos egípcios foi caminho de salvação para os judeus. Cristo usará esta simbologia quando caminhará por cima das águas da Lago de Galileia, mostrando-se assim mais forte que a mesma morte.

Mas Isaías adverte que isso foi pouco e que, além disso, não devem olhar ter os olhos fixos no passado, mas para as novas obras de Deus. As civilizações humanas são as que, mais cedo ou mais tarde, quando chega o tempo da sua decadência, não podem senão limitar-se a olhar as grandes conquistas de outros tempos, pois as forças e energias humanas terminam por se cansarem. Também é natural que os homens, ao chegarem ao fim das suas vidas, tendam inexoravelmente a deixar que os seus pensamentos sejam prisioneiros do seu passado. Mas Deus revoluciona esta lógica. É o Deus da vida, é o Deus que nunca envelhece e que, por isso, confere a quem o ama uma força inesgotável de esperança.

“Olhai”, exclama Isaías, “vou realizar um coisa nova, que já começa a aparecer; não a vedes?” E qual é essa realidade nova? É um caminho, não já através do mar, mas através do deserto, ao longo do qual Deus vai “fazer brotar rios na terra árida”. Para matar a sede. Passar através do mar simbolizava o ser salvado da morte. Os rios de água simbolizam já a vida. Se Deus os tinha salvado da morte, antes, agora pretende dar-lhes a vida. Em que sentido?

O Evangelho pode ajudar-nos. Apresentam uma mulher pecadora a Jesus, alguém que foi surpreendido em flagrante delito de adultério e perguntam ao Senhor se a devem apedrejar, seguindo assim a lei de Moisés. Como é possível que a lei de Moisés seja tão dura? Cristo revela-nos a razão profunda noutra passagem do Evangelho, em que se discute se o marido deve ou não repudiar a mulher em certas ocasiões. Cristo responde que não, dado que no início não era assim, mas que, a causa da dureza dos corações, Moisés teve de permitir esta realidade.

É esta também, no fundo, a razão pela qual práticas, como o apedrejamento dos pecadores, tinham sido permitidas na lei antiga. Sim, os judeus escaparam da morte e da escravidão do Egipto, mas não totalmente, pois a morte ainda tem o seu poder, a causa da dureza do coração. É por esta razão que levam a Cristo a pecadora. Não lhes importa expor esta mulher a uma morte tão selvagem: conta somente o seu propósito de surpreender Jesus numa falta à lei. Essa mulher não é mais que um objecto em suas mãos. Isso é o que significa ter um coração duro. É um coração hermeticamente fechado, no qual o próximo não vive, não tem realmente um lugar, e está reduzido ao estado de coisa.

Cristo mostra bem qual é a verdadeira origem desta lei, e também o motivo profundo pelo qual o seu coração está duro, quando lhes diz que todo aquele que estiver sem pecado mande a primeira pedra. Esta resposta não é simplesmente uma astúcia de Cristo, para salvar-se de uma situação delicada. Diz-lhes implicitamente aos judeus algo de uma importância fundamental: tu que pecaste tantas vezes, não perdeste o direito à paciência de um Deus, que uma e outra vez espera a tua conversão, e agora não és capaz de ser paciente com esta mulher? A verdadeira lei, a única lei, é actuar com os outros como Deus actua com os homens.

Então vemos que esta terrível incapacidade de reconhecer o amor de Deus, o qual é paciente e perdoa aos homens, é a essência da dureza de coração e a razão fundamental pela qual nascem as obras da morte. Quem se sabe amado por Deus, ama. Quem sabe que o fundamento mesmo do universo, de tudo o que existe, me ama, torna-se capaz de amar todos e todas as coisas. E por isso mesmo, quem começa a ver Deus como uma realidade impessoal, uma espécie de energia, está atentando no ponto mais fundamental contra a sua capacidade de amar, de perdoar, de ir sinceramente ao encontro dos outros.

Mas voltemos ao texto de Isaías, que nos recorda que a grande obra de Deus será fazer brotar rios de água viva das terras áridas. Perguntávamo-nos em que sentido agora o Senhor pensava dar a vida. Ora bem, sabemos que, na Bíblia, os rios de água são o símbolo do Espírito Santo. Então, o novo grande milagre do Senhor, maior que o anterior, milagre de dar a vida ao povo, não significa outra coisa, que encher do seu amor os corações duros, os corações áridos. Mas sublinhemos bem isso: Deus não quer encher de amor os corações do homem, quer enchê-los do seu amor. Para que o homem deixe de amar fragilmente e finalmente comece a amar divinamente, a amar realmente como filho de Deus. Ou melhor ainda: para que o Espírito Santo ame nele.

Quando Cristo murmurará na cruz “tenho sede”, não se referirá a outra coisa senão isso: tem sede de contemplar os corações humanos repletos dessa água viva. Mas de onde vem essa água viva? Qual é a única fonte da mesma para o homem? É Cristo, é somente o seu coração: “Mas ao chegarem a Jesus”, diz São João, “como o viram já morto, não lhe romperam as pernas, mas um dos soldados trespassou-lhe o lado com uma lança e naquele instante saiu sangue e água”.

Mas em tudo isso existe um elemento importante de que nos recorda São Paulo e ao qual aludíamos ao início desta homilia. Para receber este dom da água viva em plenitude, devemos olhar para a frente e correr para a frente. O que Deus nos deu até agora é pouco comparado com o que ainda tem reservado. Mas atenção: subir ao encontro com Deus não é uma prova de alpinismo, em que o cansaço vai acumulando-se. Quem se vai aproximando de Deus, tem cada vez mais forças para subir e quem se vai afastando cada vez menos vontade de se acercar. Porquê? Porque as forças não vêm do homem, mas de Deus. No entanto, sempre existirá a tentação de parar, de se dar por satisfeito, de olhar para si e para as conquistas passadas.

São Paulo seria talvez a pessoa com mais direito a ter uma atitude deste género. Ele que “trabalhou mais que todos”, como nos recorda a carta aos Gálatas. E no entanto, aí está a grandeza de alma deste homem: “não penso, irmãos, que já o tenha conseguido; só penso numa coisa, esquecendo o que fica para trás, lançar-me para a frente, continuar a correr para a meta, em vista do prémio a que Deus, lá do alto, me chama em Cristo Jesus”.

Sim, não importa o que tenhamos feito no passado, seja isso bom ou até mesmo mau, como no caso da mulher pecadora. Deus espera-nos com os braços abertos. Todo um futuro se abre para a mulher pecadora, a qual segundo a justiça humana tinha perdido todo direito a um futuro. Rios de água viva hão-de brotar do seu coração árido, se ela for fiel à chamada de Deus, rios que a sua vez hão-de saciar a muitos. Que esta seja também a nossa santa ambição nesta vida.

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