quarta-feira, 10 de março de 2010

Domingo IV da Quaresma, Ano C

LEITURA I  Jos 5, 9a.10-12

Tendo entrado na terra prometida, o povo de Deus celebra a Páscoa

Leitura do Livro de Josué
Naqueles dias,
disse o Senhor a Josué:
«Hoje tirei de vós o opróbrio do Egipto».
Os filhos de Israel acamparam em Gálgala
e celebraram a Páscoa,
no dia catorze do mês, à tarde,
na planície de Jericó.
No dia seguinte à Páscoa,
comeram dos frutos da terra:
pães ázimos e espigas assadas nesse mesmo dia.
Quando começaram a comer dos frutos da terra,
no dia seguinte à Páscoa,
cessou o maná.
Os filhos de Israel não voltaram a ter o maná,
mas, naquele ano,
já se alimentaram dos frutos da terra de Canaã.
Palavra do Senhor.

LEITURA II 2 Cor 5, 17-21

«Por Cristo, Deus reconciliou-nos consigo»

Leitura da Segunda Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura.
As coisas antigas passaram; tudo foi renovado.
Tudo isto vem de Deus,
que por Cristo nos reconciliou consigo
e nos confiou o ministério da reconciliação.
Na verdade, é Deus que em Cristo reconcilia o mundo consigo,
não levando em conta as faltas dos homens
e confiando-nos a palavra da reconciliação.
Nós somos, portanto, embaixadores de Cristo;
é Deus quem vos exorta por nosso intermédio.
Nós vos pedimos em nome de Cristo:
reconciliai-vos com Deus.
A Cristo, que não conhecera o pecado,
Deus identificou-O com o pecado por causa de nós,
para que em Cristo nos tornemos justiça de Deus.
Palavra do Senhor.


EVANGELHO Lc 15, 1-3.11-32

«Este teu irmão estava morto e voltou à vida»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
os publicanos e os pecadores
aproximavam-se todos de Jesus, para O ouvirem.
Mas os fariseus e os escribas murmuravam entre si, dizendo:
«Este homem acolhe os pecadores e come com eles».
Jesus disse-lhes então a seguinte parábola:
«Um homem tinha dois filhos.
O mais novo disse ao pai:
‘Pai, dá-me a parte da herança que me toca’.
O pai repartiu os bens pelos filhos.
Alguns dias depois, o filho mais novo,
juntando todos os seus haveres, partiu para um país distante
e por lá esbanjou quanto possuía,
numa vida dissoluta.
Tendo gasto tudo,
houve uma grande fome naquela região
e ele começou a passar privações.
Entrou então ao serviço de um dos habitantes daquela terra,
que o mandou para os seus campos guardar porcos.
Bem desejava ele matar a fome
com as alfarrobas que os porcos comiam,
mas ninguém lhas dava.
Então, caindo em si, disse:
‘Quantos trabalhadores de meu pai têm pão em abundância,
e eu aqui a morrer de fome!
Vou-me embora, vou ter com meu pai e dizer-lhe:
Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho,
mas trata-me como um dos teus trabalhadores’.
Pôs-se a caminho e foi ter com o pai.
Ainda ele estava longe, quando o pai o viu:
encheu-se de compaixão
e correu a lançar-se-lhe ao pescoço, cobrindo-o de beijos.
Disse-lhe o filho:
‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti.
Já não mereço ser chamado teu filho’.
Mas o pai disse aos servos:
‘Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha.
Ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés.
Trazei o vitelo gordo e matai-o.
Comamos e festejemos,
porque este meu filho estava morto e voltou à vida,
estava perdido e foi reencontrado’.
E começou a festa.
Ora o filho mais velho estava no campo.
Quando regressou,
ao aproximar-se da casa, ouviu a música e as danças.
Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo.
O servo respondeu-lhe:
‘O teu irmão voltou
e teu pai mandou matar o vitelo gordo,
porque ele chegou são e salvo’.
Ele ficou ressentido e não queria entrar.
Então o pai veio cá fora instar com ele.
Mas ele respondeu ao pai:
‘Há tantos anos que eu te sirvo,
sem nunca transgredir uma ordem tua,
e nunca me deste um cabrito
para fazer uma festa com os meus amigos.
E agora, quando chegou esse teu filho,
que consumiu os teus bens com mulheres de má vida,
mataste-lhe o vitelo gordo’.
Disse-lhe o pai:
‘Filho, tu estás sempre comigo
e tudo o que é meu é teu.
Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos,
porque este teu irmão estava morto e voltou à vida,
estava perdido e foi reencontrado’».
Palavra da salvação.
Homilia Pe. Antoine Coelho, LC
Domingo IV da Quaresma

Nesta Quaresma não podíamos deixar de meditar sobre a parábola do filho pródigo. É o que nos propõe a liturgia para este quarto domingo de Quaresma. Mais que ouvir ou ler uma pregação ao respeito, deve ser meditada com calma. Convém que cada um de nós tome a parábola (Lc 15,11-32), a leia sem pressa e possa usá-la como ponto de partida para um diálogo com Deus de coração a coração.

Porque é tão importante este Evangelho? Pois aqui, Deus revela-nos com clareza extraordinária o seu coração de Pai. Quem diante do mal deste mundo, das suas misérias e pecados, duvide que possa existir um Deus bom, pois “Deus seguramente não permitiria tais coisas” deveria reflectir sobre quanto está dito nesta passagem. Um teólogo protestante do século passado, Moltmann, perguntava-se se ainda podíamos falar de Deus depois de Auschwitz. Ele mismo deu a resposta: “Depois de Auschwitz, somente pode-se falar de Deus”. Pois os campos de concentração mostraram claramente aquilo de que o homem é capaz sem o Senhor.

Sim, quem lê, contempla, medita neste trecho dá-se conta que aqui há um tal amor de Deus pelo homem, que nada é mais urgente, hoje em dia, que reintroduzir Deus em todas as dimensões da nossa vida. O filho mais novo da história, é precisamente o que busca evitar. Sente um grande tédio pela casa paterna, ou seja, um grande tédio pelas coisas de Deus. Nunca as entendeu, porque nunca quis abandonar a própria lógica. É como os interlocutores de Cristo durante a sua Paixão. Pilatos pergunta ao Senhor quem é Ele. Cristo não responde. Efectivamente Deus não responde a quem o busca centrado fundamentalmente no interesse próprio. Ou melhor: Deus sempre fala de alguma maneira, sempre responde, mas não o pode ouvir quem só se ouve a si mesmo. Quem sai dos estreitos confins de si mesmo, dos seus esquemas mentais, dos seus conceitos e hábitos demasiado pessoais, descobre, do outro lado da sua porta, um mundo resplandecente, porque através dele, de modo misterioso, precisamente quem resplandece é Deus.

Mas o filho mais novo nunca entendeu essas coisas, não é capaz de apreciar a beleza da vida com o pai. Esse pai, por mais bondoso que seja, é um limite para ele, é uma barreira para tantas coisas divertidas, que vê talvez os amigos realizarem. Por isso, pede a herança. E o mais curioso é que o pai a dá, sem oferecer o “não” rotundo que todos esperaríamos. Mas é que não se importa com o filho?

Este “dar a herança” aparentemente sem grandes resistências, é um episódio que se repetiu inúmeras vezes na história da humanidade. Acontece cada vez que o homem apodera-se da criação, sem qualquer referência ao Criador. Não poderá gozar assim mais da criação? Mas é nestas decisões que começa o que mais tarde originará os Auschwitz, os campos de concentração siberianos, os abortos em massa, as guerras fratricidas, as limpezas étnicas, e, já antes, as quase ilimitadas trafulhices, injustiças e enganos que compõem a vida sobre esta terra. Porque Deus dá tantas facilidades ao homem contemporâneo para “gozar da herança”, para desenvolver a ciência, a economia, a política de forma irresponsável? Diante disso, há quem pense que Deus não pode ser uma realidade pessoal, consciente, inteligente, capaz de amar.

O que não vêm é que é precisamente porque ama o filho, que o pai o deixa sair de casa. Retirar-lhe esta liberdade é destrui-lo, é encerrá-lo numa prisão. Quando Deus criou o homem, fez-lhe esse dom incrível da liberdade e sabia bem o risco implicado. É como quando pais têm um filho. Sabem que esse filho pode tornar-se o inferno da sua vida, pois é livre, mas é preciso amar pouco para não o querer ter. Era tão grande o amor de Deus e o dom da vida que fazia, que estava disposto a sofrer o que fosse necessário para mantê-lo. A história ensinou-nos na cruz, até que ponto Deus foi capaz de amar a liberdade da sua criatura.

Conhecemos o que segue na parábola. A vida corre mal ao filho ingrato, como não podia deixar de ser. Mostrou que não sabia amar. Como lhe podia correr bem a vida? Termina arruinado e deve dedicar-se a cuidar de porcos. Suprema humilhação para um judeu! Chegou ao ponto mais baixo possível. Aqui também a história da humanidade oferece-nos exemplos inesgotáveis. O homem sem Deus chega a uma violência, uma brutalidade, um atropelo à própria dignidade, de que os animais são absolutamente incapazes. Mas no ponto mais baixo chega a luz, às vezes a luz mais forte que se possa imaginar. Não é na cruz, ou seja, no assassínio de Deus, onde brilha mais que nunca o amor de Deus? Não foi em Auschwitz onde brilhou Maximiliano Kolbe, que tomou o lugar de um condenado a morrer de fome e de sede?

Mas é também nestes infernos que o homem cria, onde ele se pode olhar como num espelho: “eis o que me tornei porque não aceitei que Deus habitasse em mim”. Feito para ser templo de Deus, se expulsa o seu Senhor, se proclama a “morte de Deus”, como alguns pensadores do século XIX e XX, ficam abertas as portas para as mais terríveis possibilidades. E é também porque as forças do mal não permanecem ociosas. Certa vez, um jornalista, para burlar-se da crença cristã ao respeito da existência objectiva de forças espirituais malignas, perguntou ao cardeal Lustiger se acreditava no diabo. E quando este respondeu que sim, ainda mais irónico o jornalista gracejou: “Ah, sim? Pois diga-me onde o vê?” Como se somente existisse o que podemos ver e tocar…Pois bem, o cardeal retorquiu: “Sim, eu vi o diabo nas câmaras de gás de Auschwitz”.

Mas o homem não é definitivamente um prisioneiro das forças do mal, porque Deus é misericórdia. Com efeito a misericórdia de Deus é a verdadeira liberdade do homem, o que lhe impede ser um boneco dos seus instintos e dos poderes malignos. Vemos essa misericórdia tocar o coração do filho pródigo, como um raio que vem de Deus e o leva a reflectir no meio das suas horas mais sombrias. “Quantos trabalhadores de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome! Vou-me embora, vou ter com meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho, mas trata-me como um dos teus trabalhadores”.

Quão pouco conhecia o coração do próprio pai. Não admira que o tivesse abandonado…Como se o pai, ao seu regresso, pensaria em castigos ou em vinganças, como se não fosse capaz de perdoar. A justiça existe e é necessária. O mal que esse filho fez a si mesmo, ele terá de pagá-lo de alguma forma, pois não será fácil, depois de se ter dedicado aos vícios, reaprender a virtude. Existe a necessidade de purificação. Que responsabilidade existiria se nunca ninguém tivesse que pagar pelos próprios erros? E que classe de amor paterno seria este se não chamasse os filhos à responsabilidade? O amor não é real sem a justiça. Mas a misericórdia é largamente superior à justiça num autêntico coração paterno como o de Deus. Neste sentido, a parábola fala por si mesma:

“Disse-lhe o filho: ‘Pai, pequei contra o Céu e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho’. Mas o pai disse aos servos: ‘Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha. Ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés. Trazei o vitelo gordo e matai-o. Comamos e festejemos, porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado’. E começou a festa”.

Um último comentário. Como sabemos, a história não acaba aqui. Chega o momento da rebelião do filho mais velho. Chega a sua vez. Porquê? Porque se festeja o regresso do mais novo. Mais ainda: não se podia imaginar uma festa maior naquela casa. A prova é que se matou o vitelo gordo. O filho mais velho sentirá algo de inveja, certamente. Mas não é só isso. Há algo mais profundo. Também ele não compreende o coração do pai. O seu coração é fiel, cumpre, obedece, mas tudo é ainda muito exterior. Não chega a uma comunhão com o pai. Não chega ao amor maduro. De facto, em vez de se alegrar com o regresso do irmão mais novo, fica terrivelmente aborrecido ao ponto de já não querer entrar em casa. O filho mais novo abandonara a casa. Agora o filho mais velho fica plantado diante dela sem querer entrar. Bela imagem do que, no fundo, foi a sua vida até este momento.

Podemos ser às vezes um pouco como esse filho mais velho. Fazemos as nossas orações, cumprimos com a missa dominical, damos esmola, ou seja, cumprimos com os dez mandamentos. Mas será que somos como esse pai que vai com beijos ao encontro do filho que o traiu? Da a impressão que esse pai não sabe pensar na própria honra ferida. É como Cristo completamente nu, pregado a uma cruz. Não é indecente que Deus se preste isso? Não é demasiada humilhação? Não está Deus a perder credibilidade? Não. Está simplesmente a dar-nos uma grande lição de amor. A grande lição do amor. Depois disso, como diz São Bernardo, a medida do amor é amar sem medida.

Peçamos muito a Deus a graça de compreender com o coração essas coisas, que são tão afastadas do modo como o mundo entende a vida. Por isso, é tão necessário não se limitar a ler esta parábola, mas meditá-la sem pressa, no silêncio da oração, aí onde Deus nos dá lições magistrais de vida.

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