sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Domingo I da Quaresma

LEITURA I  Deut 26, 4-10

A profissão de fé do povo eleito

Leitura do Livro do Deuteronómio
Moisés falou ao povo, dizendo:
«O sacerdote receberá da tua mão
as primícias dos frutos da terra
e colocá-las-á diante do altar do Senhor, teu Deus.
E diante do Senhor teu Deus, dirás as seguintes palavras:
‘Meu pai era um arameu errante,
que desceu ao Egipto com poucas pessoas,
e aí viveu como estrangeiro,
até se tornar uma nação grande, forte e numerosa.
Mas os Egípcios maltrataram-nos, oprimiram-nos
e sujeitaram-nos a dura escravidão.
Então invocámos o Senhor, Deus dos nossos pais,
e o Senhor ouviu a nossa voz,
viu a nossa miséria, o nosso sofrimento
e a opressão que nos dominava.
O Senhor fez-nos sair do Egipto
com mão poderosa e braço estendido,
espalhando um grande terror e realizando sinais e prodígios.
Conduziu-nos a este lugar e deu-nos esta terra,
uma terra onde corre leite e mel.
E agora venho trazer-Vos as primícias dos frutos da terra
que me destes, Senhor’.
Então colocarás diante do Senhor, teu Deus,
as primícias dos frutos da terra
e te prostrarás diante do Senhor, teu Deus».
Palavra do Senhor.

LEITURA II Rom 10, 8-13

Profissão de fé dos que crêem em Cristo

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Romanos
Irmãos:
Que diz a Escritura?
«A palavra está perto de ti,
na tua boca e no teu coração».
Esta é a palavra da fé que nós pregamos.
Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor
e se acreditares no teu coração
que Deus O ressuscitou dos mortos,
serás salvo.
e com a boca se professa a fé para alcançar a salvação.
Na verdade, a Escritura diz:
«Todo aquele que acreditar no Senhor
não será confundido».
Não há diferença entre judeu e grego:
todos têm o mesmo Senhor,
rico para com todos os que O invocam.
Portanto, todo aquele que invocar o nome do Senhor
será salvo.
Palavra do Senhor.

EVANGELHO Lc 4, 1-13


«Esteve no deserto, conduzido pelo Espírito, e foi tentado»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus, cheio do Espírito Santo,
retirou-Se das margens do Jordão.
Durante quarenta dias,
esteve no deserto, conduzido pelo Espírito,
e foi tentado pelo Diabo.
Nesses dias não comeu nada
e, passado esse tempo, sentiu fome.
O Diabo disse-lhe:
«Se és Filho de Deus,
manda a esta pedra que se transforme em pão».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Nem só de pão vive o homem’».
O Diabo levou-O a um lugar alto
e mostrou-Lhe num instante todos os reinos da terra
e disse-Lhe:
«Eu Te darei todo este poder e a glória destes reinos,
porque me foram confiados e os dou a quem eu quiser.
Se Te prostrares diante de mim, tudo será teu».
Jesus respondeu-lhe:
«Está escrito:
‘Ao Senhor teu Deus adorarás,
só a Ele prestarás culto’».
Então o Diabo levou-O a Jerusalém,
colocou-O sobre o pináculo do templo
e disse-Lhe:
«Se és Filho de Deus,
atira-Te daqui abaixo,
porque está escrito:
‘Ele dará ordens aos seus Anjos a teu respeito,
para que Te guardem’;
e ainda: ‘Na palma das mãos te levarão,
para que não tropeces em alguma pedra’».
Jesus respondeu-lhe: «Está mandado:
‘Não tentarás o Senhor teu Deus’».
Então o Diabo, tendo terminado toda a espécie de tentação,
retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo.
Palavra da salvação.


Homilia Pe. Antoine Coelho, LC

Domingo I da Quaresma


A missa do próximo domingo apresenta-nos as tentações do Senhor, segundo a versão de São Lucas. Como sabemos, tiveram lugar durante os quarenta dias que o Senhor passou no deserto, tempo durante o qual não comeu nada. São Lucas menciona que “foi conduzido até ao deserto pelo Espírito, e foi tentado pelo Diabo”. O Espírito e o Diabo, são por assim dizer, os dois extremos deste episódio.

Aqui, com efeito, opõem-se o Espírito de Deus e o espírito do mal. Entre eles, o homem deve fazer a sua escolha. Cristo, como todo homem, teve de a fazer, embora, por ser Deus, não podia deixar de optar pelo bem. A condição necessária para que esta escolha seja realmente livre e que, por isso, se possa orientar para o bem é o jejum. Entenda-se jejum em sentido amplo, como o saber prescindir do não essencial. Cada apego às coisas deste mundo é como uma corda pela qual o espírito do mal pode “puxar” os corações, abalá-los e roubar-lhes a paz. Sejamos convencidos disso: onde há falta de paz, existe um apego. Se habitualmente nos faltar a paz, então, com certeza, é porque o nosso coração está muito apegado.

Claro, podemos culpabilizar os outros pela nossa falta de paz: se tal pessoa não tivesse sido mal-educada, caluniadora, se não tivesse sido injusta comigo, teria guardado a paz…O simples facto de que fazemos depender a paz dos outros, mostra que não entendemos ainda bem o que ela é: um dom de Deus. Cristo foi submetido às mais atrozes provas. Chegou a angustiar-se grandemente no Jardim das Oliveiras, suando sangue, mas na oração encontrou paz. Na cruz, perguntou ao seu Pai porquê o tinha abandonado, mas mantendo-se em oração, soube suspirar finalmente: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu Espírito”.

No presente relato evangélico, Cristo não se limita a passar uns dias no deserto. Permaneceu aí 40 dias. Tal duração significa, no mundo da Bíblia, a plenitude: Cristo é plenamente desapegado das coisas. Isso significa que nós também, em quanto seguidores de Cristo, devemos tender a uma plena libertação do mundo. Não bastam meias vitórias. A nossa vida é feita delas, é verdade, mas quem se contenta com elas já perdeu. Devemos temer querer ser simplesmente boas pessoas. O mundo está já cheio de boas pessoas…Quem vive mirando a vitória total, confiado no poder de Deus e não nas suas forças, está realmente no bom caminho. Devemos buscar a santidade. Muitas objecções podem vir imediatamente à nossa mente ante tal meta. “Boas” razões todas elas, sensatas. Mas, com isso, mostramos somente não haver entendido ainda o que é a santidade. Com efeito, quem duvida que pode ser santo, não sabe o que é a santidade e deve pedir insistentemente a Deus que lhe permita entrar na sua lógica e deixar os caminhos humanos. A santidade é um dom de Deus (como a paz!) que receberá sempre quem a busque sinceramente.

“Mas não sou ainda desapegado”, dirá alguém. “Não sou capaz de buscar sinceramente a santidade”. Pois então, que peça a Deus a experiência do deserto. Ou seja, que peça ao Espírito Santo a graça de ser levado à compreensão do que valem as coisas deste mundo, quando não são amadas em Deus. Sim, o que o coração busca sem Deus, é deserto, há-de o condenar à solidão, vai fechá-lo sobre si mesmo e impedir uma límpida e espontânea comunicação com os outros. Mas este deserto sabe mascarar-se muito bem, vestir roupas de carnaval, fingir sorrisos…O Espírito Santo é capaz de nos mostrar a face interior, desértica, deste teatro de alegrias superficiais. Aí, na lucidez que se produz, nasce o mais profundo desejo do homem: o de Deus, o da santidade.

Mas no deserto, não somente se descobre a vanidade do mundo, como também se percebe a verdadeira natureza do mal. Como Cristo também teve de se enfrentar às tentações. As tentações de Cristo são as de toda a humanidade.

Em primeiro lugar, o Diabo incita-o a transformar as pedras em pães. Não é Cristo o Filho de Deus? Porque teria então que padecer fome? Trata-se da tentação do materialismo, de fechar o horizonte humano dentro do nosso mundo, sem elevar os olhos até Deus. Está particularmente presente hoje em dia. Não somente porque muitos homens parecem esperar unicamente a felicidade dos bens terrenos, mas também porque se desenvolvem formas de espiritualidade centradas sobre as energias deste mundo. Energias cegas, materiais, elas também, e por isso, incapazes de resolver os problemas mais profundos que são de índole espiritual.

Cristo responde da melhor forma possível às sugestões do adversário: “nem só de pão vive o homem”. Sim, o homem vive sobretudo de Deus. Eis porque Deus permitiu, ao longo do tempos, que santos vivessem sem alimentar-se de outra coisa que a Eucaristia, o Pão do Céu. Para nos recordar quem é o dador da vida e em que consiste a verdadeira vida.

A segunda tentação é mais própria do espírito. Não se dirige à fome meramente corporal, mas à sede espiritual de poder e de glória. O coração do homem deseja ardentemente Deus, mas este movimento, como fruto do pecado, pode ser adulterado. Então, o desejo de Deus degrada-se e transforma-se em desejo de ser deus, ao menos aos olhos dos homens. Mas tal meta é um grande engano, porque equivale, no fundo, a ser escravizado pelas forças do mal. Por isso, como condição da possessão de todos os reinos, Satanás pede ao Senhor que se prostre diante dele. Mas, de facto, o próprio Satanás, aparentemente tão livre e potente, senhor e príncipe, não passa de ser um escravo de si mesmo, incapaz de encontrar esta profunda união consigo mesmo, que chamamos paz. Quem abandona Deus, torna-se o pior tirano para si mesmo.

“Ao Senhor teu Deus adorarás, só a Ele prestarás culto”, responde-lhe o Senhor desta vez. Sim, ser livre é adorar o Senhor. É próprio do homem livre, de facto, não escravizar ninguém, não querer exercer o próprio jugo sobre os demais, tal como Deus, que, sendo Ele quem é, serve as suas criaturas.

“Se és Filho de Deus, atira-Te daqui abaixo, porque está escrito: Ele dará ordens aos seus anjos a teu respeito, para que te guardem”. Trata-se do último ataque diabólico. Nos Evangelhos de São Mateus e São Marcos, figura como a segunda tentação. Lucas prefere colocá-la no fim, o que sugere que aqui atingimos o ponto culminante da degradação. Pessoalmente estou de acordo com Lucas. Vejo aqui a suprema tentação de usar de Deus. Não se trata somente de escravizar os homens, como na segunda, mas de submeter Deus aos próprios caprichos. Encontramos o núcleo mais pérfido do pecado. A isso tende, no fim de contas, todo pecado, por mais pequeno que seja e ainda que seja de forma inconsciente: subir ao trono de Deus e tomar o seu lugar. A terceira tentação manifesta assim o verdadeiro rosto do mal, a sua hediondez e profunda injustiça. Com Cristo respondamos: “Não tentarás o Senhor teu Deus!”

Assim, vemos delineado o que devemos procurar nesta quaresma: uma consciência mais clara da precariedade da vida sem Deus, ou, se preferirmos, da vida sem a Vida. O que podemos sensatamente esperar dela? Também devemos pedir a Deus compreender que não existe um caminho intermédio entre o de Deus e o do mal, um caminho mais “humano”, mais adaptado ao que somos. A vida sem a Vida, não pode senão deslizar perigosamente para as redes da morte. Recordemos também que ninguém é mais humano que Deus, porque Ele fez-se homem, mais ainda tornou-se o homem modelo. Por isso, que esta quaresma nos veja também contemplando muito o exemplo de Cristo. Quem o seguir, passando pelo deserto, encontrará infalivelmente a Terra Prometida, da qual mana o leite e o mel do amor de Deus.

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