quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

6º Domingo do Tempo Comum, Ano C

LEITURA I Jer 17, 5-8

«Maldito quem confia no homem;
bendito quem confia no Senhor»

Leitura do Livro de Jeremias
Eis o que diz o Senhor:
«Maldito quem confia no homem
e põe na carne toda a sua esperança,
afastando o seu coração do Senhor.
Será como o cardo na estepe,
que nem percebe quando chega a felicidade:
habitará na aridez do deserto,
terra salobre, onde ninguém habita.
Bendito quem confia no Senhor
e põe no Senhor a sua esperança.
É como a árvore plantada à beira da água,
que estende as suas raízes para a corrente:
nada tem a temer quando vem o calor
e a sua folhagem mantém-se sempre verde;
em ano de estiagem não se inquieta
e não deixa de produzir os seus frutos».
Palavra do Senhor.


LEITURA II 1 Cor 15, 12.16-2o

«Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé»

Leitura da Primeira Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Se pregamos que Cristo ressuscitou dos mortos,
porque dizem alguns no meio de vós
que não há ressurreição dos mortos?
Se os mortos não ressuscitam,
também Cristo não ressuscitou.
E se Cristo não ressuscitou,
é vã a vossa fé, ainda estais nos vossos pecados;
e assim, os que morreram em Cristo pereceram também.
Se é só para a vida presente
que temos posta em Cristo a nossa esperança,
somos os mais miseráveis de todos os homens.
Mas não.
Cristo ressuscitou dos mortos,
como primícias dos que morreram.
Palavra do Senhor.

EVANGELHO Lc 6, 17.20-26

«Bem-aventurados os pobres.
Ai de vós, os ricos»


Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus desceu do monte, na companhia dos Apóstolos,
e deteve-Se num sítio plano,
com numerosos discípulos e uma grande multidão
de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e Sidónia.
Erguendo então os olhos para os discípulos, disse:
Bem-aventurados vós, os pobres,
porque é vosso o reino de Deus.
Bem-aventurados vós que agora tendes fome,
porque sereis saciados.
Bem-aventurados vós que agora chorais,
porque haveis de rir.
Bem-aventurados sereis, quando os homens vos odiarem,
quando vos rejeitarem e insultarem
e proscreverem o vosso nome como infame,
por causa do Filho do homem.
Alegrai-vos e exultai nesse dia,
porque é grande no Céu a vossa recompensa.
Era assim que os seus antepassados tratavam os profetas.
Mas ai de vós, os ricos,
porque já recebestes a vossa consolação.
Ai de vós, que agora estais saciados,
porque haveis de ter fome.
Ai de vós que rides agora,
porque haveis de entristecer-vos e chorar.
Ai de vós quando todos os homens vos elogiarem.
Era assim que os seus antepassados
tratavam os falsos profetas.
Palavra da salvação.


Homilia Pe. Antoine Coelho, LC


Neste domingo a liturgia apresenta para a nossa meditação a proclamação das bem-aventuranças segundo o Evangelho de São Lucas. Estamos diante de uma parte crucial da mensagem de Jesus. Sabemos que ao centro de toda proposta religiosa está a questão da felicidade. Se as religiões são atraentes é precisamente por isso: prometem a felicidade para o fiel.

Hoje em dia, nenhuma outra realidade ou dimensão de nossa vida pode pretender oferecer a felicidade sem cair no ridículo: a ciência e a técnica já não o podem fazer de forma plausível. Quem acredita realmente hoje em dia que a ciência vai resolver os nossos problemas, sobretudo os nossos problemas mais profundos? Muito menos a política ou a economia o poderá. Tampouco as nossas famílias, fontes de grandes alegrias como de profundas preocupações. Os nossos lazeres pessoais e hobbies oferecem algum mas não resolvem o problema da vida.

Poderíamos continuar ainda esta enumeração. No fim, seriamos obrigados a chegar a esta conclusão: a felicidade não pertence ao nosso mundo. Mais ainda: não pertence ao homem. No máximo, podemos encontrar pequenas ou, inclusive, grandes alegrias na vida, mas serão sempre pequenas ilhas precárias de felicidade, sempre provisórias e às quais damos a volta com demasiada facilidade. No entanto, não só não pertence ao homem a felicidade, como, ainda por cima, foge dele. É curioso, mas quanto mais alguém neste mundo a busca para si, menos a encontra. É que na verdade, a felicidade não se trata de algo que possuímos como possuímos um carro ou uma qualidade pessoal ou qualquer outra realidade mundana. Como ficará mais claro depois, é a felicidade que nos deve possuir primeiro. Somente depois podemos possuí-la. É uma dinâmica absolutamente oposta às coisas deste mundo: nos as tomamos e pensamos ser os seus proprietários, mas se não sabemos desapegar-nos delas, são elas mesmas que nos vão escravizando pouco a pouco.

Voltando ao Evangelho, constatamos que Cristo, no início de sua missão, propõe as bem-aventuranças, ou seja, as atitudes interiores de que se devem revestir os discípulos se quiserem ser felizes nesta vida e chegar a experimentar, sobretudo na próxima vida, a felicidade total. Mas eis que encontramos uma anomalia. Algo que nenhum de nós seguramente faria se tivesse que inventar uma religião minimamente susceptível de conseguir adeptos. Cristo, chama felizes os pobres, os esfomeados, os que choram, os que são odiados por todos. E são terrivelmente desditosos os ricos, os saciados, os que riem, os admirados e elogiados. Poderá sobreviver uma religião que prega tal tipo de felicidade, uma religião que parece maltratar precisamente o que a poderia tornar atraente aos olhos dos homens?

A questão agrava-se mais se a consideramos desde esta perspectiva: as bem-aventuranças são um auto-retrato de Jesus. É Ele o pobre, o esfomeado, o que chora pelos pecados do mundo, o odiado ao ponto de ser crucificado, sem ter feito nada que pudesse merecer tal condenação. É Ele o bem-aventurado por excelência. Se Ele, o nosso modelo a seguir, viveu de forma tão dura as bem-aventuranças, como poderá esperar ter discípulos? Buda morreu com um sorriso nos lábios. Maomé tinha triunfado na vida: rico, admirado e poderoso, não podia pedir mais da existência, ao menos do ponto de vista mundano. E Cristo? Crucificado, abandonado por todos, objecto de todas as burlas. E ainda por cima recorda que a única forma de ser fiel ao seu ensinamento é segui-lo. De facto, ser cristão não pode significar outra coisa.

Mas vejamos agora a vida de alguns dos seus seguidores. Certas vidas de santos são tão impressionantes que podemos perguntar-nos se convém realmente ser cristão a este preço. A mística francesa Marthe Robin, que viveu no século passado, passou 40 anos alimentando-se somente da Eucaristia! Anoto que se trata de um facto comprovado, pois a sua fama era tão grande em França que muitos cépticos buscaram demonstrar que se tratava de uma invenção, mas nunca o conseguiram. O próprio Padre Pio, autor de inumeráveis milagres aqui em Itália, vivia com uma frugalidade insuportável para um homem comum. Sem contar as dores por causa dos estigmas, dores que não encontravam explicação médica. E que dizer de um exemplo que nos é ainda mais familiar: João Paulo II? Todos assistimos durante anos ao seu tão mediatizado calvário. Gostaríamos de partilhá-lo?

Como responder a estas perguntas? Em primeiro lugar, anotemos que é o Evangelho de São Lucas a propor com tal crueza as bem-aventuranças. Sabemos que Lucas gosta de suavizar as verdades evangélicas com expressões mais facilmente aceitáveis. Mas aqui, Lucas sente que estamos diante de uma realidade tão decisiva, que deve ser expressada em toda a sua pureza. É que estamos diante da cruz, e o maior favor que podemos fazer-lhe à cruz e ao homem e ao Evangelho, é apresentá-la tal como é. Cristo, felicidade e cruz: eis que vemos reunidos, nas bem-aventuranças, três termos centrais do Evangelho, que configuram o seu núcleo misterioso e que são, ao mesmo tempo, o segredo de seu lento, mas, cada vez mais dilatado sucesso. Eles podem resumir-se numa única expressão: amor, amor que é divino e humano ao mesmo tempo. A grande tentação de todos os tempos será buscar conseguir adeptos, separando a cruz dos outros dois termos, mas assim destrói-se o amor. Consequentemente o cristianismo, como não tem nada mais que dar ao mundo, acaba por perder os fiéis.

Certa vez, fiquei impressionado ao ler as experiências pessoais de dois ex-prisioneiros dos campos de concentração alemães, durante a segunda guerra mundial. Eram ambos resistentes franceses, que a Gestapo acabara por descobrir e deportar. O primeiro, que fora parar a Buchenwald, conta como, durante estes anos, o ter sido objecto do ódio mais brutal e sagaz ao mesmo tempo, tinha-lhe sulcado a psicologia com feridas que nunca mais sarariam. Ainda 50 anos depois, sentia o peso colossal do mal, que lhe esmagara para sempre parte da alma. O segundo, Edmond Michelet, ministro francês com De Gaulle, 20 anos depois, relatava numa conferência como a experiência, no campo de Dachau, tinha sido feliz. Sim, tinha sido segundo ele uma experiência feliz! Como é possível tal disparidade de impressões? Conta Edmond que por uma graça especial de Deus, tinha-se sentido unido aos mártires cristãos, especialmente a São Tarcísio, que ele tanto venerava, por ter este santo preferido morrer apedrejado que entregar a Eucaristia a pagãos desejosos de a profanarem. O terrível ódio de Dachau, que se abatera sobre Edmond, não lhe impedira dar um sentido a esta experiência, de encontrar “entre as feras” o sentido da existência: dar a própria vida, unido a Cristo, para o triunfo do amor.

A psicologia de Edmond não saíra mutilada de Dachau, porque aí, neste inferno humano, encontrara Aquele que nunca temeu os infernos humanos, mas antes viveu-os com mais radicalidade que ninguém: Cristo. Edmond fizera a experiência da sua Cruz, experimentara com singularíssima intensidade o conteúdo paradoxal das bem-aventuranças. Vivera o amor, como Cristo o tinha vivido dois mil anos antes, de forma divina e humana, e isso foi o segredo da grande felicidade e paz, que caracterizou depois o resto de sua vida. Uma felicidade e paz profundas, que não dependiam de circunstâncias externas, de caprichos pessoais, da condescendência de homens volúveis, mas unicamente de saber que, dando-se a si mesmo, construía a misteriosa civilização do amor, que, quando os tempos chegarem ao seu fim, chamaremos a Jerusalém Celeste: a Cidade que não necessitará mais a luz do sol, porque Deus brilhará para todos em seu centro.

Sabemos que a felicidade significa amar e ser amado. O que não sempre sabemos é que não existe um amor sem cruz. Em todos nós, existe o sonho de conseguir produzir nas nossas vidas um amor sem verdadeiro sacrifício. Mas também, ao mesmo tempo, nas profundezas da nossa consciência, bem sabemos que isso não é possível. O amor verdadeiro quer dizer deixar-se a si mesmo, viver para os outros. É isso o que produz paz. É um amor que tem de ser vivido concretamente, indo ao encontro dos outros. Custa. Mas, ao mesmo tempo, libera. Conta o actor Eduardo Verastegui numa entrevista, como não tem sido fácil para ele viver a castidade em Hollywood. No entanto, experimenta que, cada dia depois de sua conversão, vale mais e é mais feliz que os 20 anos anteriores, vividos com muita “liberdade”.

Cristo sabia isso, sabia onde se encontrava a verdadeira liberdade e felicidade. Mais ainda, sabia que Ele era a nossa felicidade. “Vinde a mim os que estais cansados e encontrareis o vosso descanso”, exclama Ele no Evangelho. O segredo da felicidade, como dizíamos, não é buscá-la freneticamente, procurando novas experiências, tecnologias, novas possessões, companhias humanas… O segredo da felicidade é muito mais simples: é confiar nela e deixar que ela nos encontre: Jesus bate à nossa porta todos os dias. Se abrirmos Ele entrará, sentar-se-á e jantará connosco, e quem nos poderá roubar a força de sua alegria que procede directamente da Eternidade e que enche a alma de uma paz sobrenatural? É essa paz que Edmond e Eduardo e tantos outros cristãos encontraram até darem a sua vida por ela.

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