sábado, 28 de agosto de 2010

Domingo XXII do tempo comum, Ano C

LEITURA I Sir 3, 19-21.30-31 (gr.17-18.20.28-29)

«Humilha-te e encontrarás graça diante do Senhor»

Leitura do Livro de Ben-Sirá
Filho, em todas as tuas obras procede com humildade
e serás mais estimado do que o homem generoso.
Quanto mais importante fores, mais deves humilhar-te
e encontrarás graça diante do Senhor.
Porque é grande o poder do Senhor
e os humildes cantam a sua glória.
A desgraça do soberbo não tem cura,
porque a árvore da maldade criou nele raízes.
O coração do sábio compreende as máximas do sábio
e o ouvido atento alegra-se com a sabedoria.
Palavra do Senhor.

LEITURA II Hebr 12, 18-19.22-24a

«Aproximastes-vos do monte Sião, da cidade do Deus vivo»

Leitura da Epístola aos Hebreus
Irmãos:
Vós não vos aproximastes de uma realidade sensível,
como os israelitas no monte Sinai:
o fogo ardente, a nuvem escura,
as trevas densas ou a tempestade,
o som da trombeta e aquela voz tão retumbante
que os ouvintes suplicaram que não lhes falasse mais.
Vós aproximastes-vos do monte Sião,
da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste,
de muitos milhares de Anjos em reunião festiva,
de uma assembleia de primogénitos inscritos no Céu,
de Deus, juiz do universo,
dos espíritos dos justos que atingiram a perfeição
e de Jesus, mediador da nova aliança.
Palavra do Senhor.

EVANGELHO Lc 14, 1.7-14

«Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus entrou, a um sábado,
em casa de um dos principais fariseus
para tomar uma refeição.
Todos O observavam.
Ao notar como os convidados escolhiam os primeiros lugares,
Jesus disse-lhes esta parábola:
«Quando fores convidado para um banquete nupcial,
não tomes o primeiro lugar.
Pode acontecer que tenha sido convidado
alguém mais importante do que tu;
então, aquele que vos convidou a ambos, terá que te dizer:
‘Dá o lugar a este’;
e ficarás depois envergonhado,
se tiveres de ocupar o último lugar.
Por isso, quando fores convidado,
vai sentar-te no último lugar;
e quando vier aquele que te convidou, dirá:
‘Amigo, sobe mais para cima’;
ficarás então honrado aos olhos dos outros convidados.
Quem se exalta será humilhado
e quem se humilha será exaltado».
Jesus disse ainda a quem O tinha convidado:
«Quando ofereceres um almoço ou um jantar,
não convides os teus amigos nem os teus irmãos,
nem os teus parentes nem os teus vizinhos ricos,
não seja que eles por sua vez te convidem
e assim serás retribuído.
Mas quando ofereceres um banquete,
convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos;
e serás feliz por eles não terem com que retribuir-te:
ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos.
Palavra da salvação.

Homilia do Pe. Antoine Coelho, LC

A primeira leitura, o livro de Ben Sirá, dá-nos um conselho que merece ser meditado muitas vezes: “quanto mais importante fores, mais deves humilhar-te e encontrarás graça diante do Senhor”. Temos aqui novamente uma destas verdades da espiritualidade bíblica, que são um verdadeiro tesouro e que contrastam radicalmente com o pensamento do mundo. Para o século presente, o homem importante é precisamente aquele que não tem de se humilhar porque está acima de todos; não chegou ao cume para depois ter de se inclinar diante dos outros. A humildade para o mundo é símbolo de fraqueza, todo o contrário daquilo que se espera de um homem importante.
Mas, se o mundo presente pensa isso, é porque ainda não entendeu em que consiste a verdadeira humildade. Senão compreenderia que não somente é conveniente ao homem importante ser humilde, mas é absolutamente vital, se ele quer ser realmente um homem forte, que possa influenciar positivamente os outros.

O Evangelho deste domingo dá-nos umas pistas sobre o verdadeiro significado da humildade. “Quando fores convidado para um banquete nupcial”, diz o Senhor, “não tomes o primeiro lugar...quando fores convidado, vai sentar-te no último lugar”. A conclusão do Senhor é magistral. Que pena que estamos tão acostumados a ouvi-la e assim deixamos de apreciá-la em toda a sua beleza e grandeza: “Quem se exalta será humilhado e que se humilha será exaltado”.

Costuma-se dizer na espiritualidade católica, citando Sta Teresa de Ávila, que “a humildade é a verdade”, no sentido de que o homem humilde é capaz de reconhecer a verdade da sua vida. Assim, segundo a interpretação que se costuma dar à frase de Sta Teresa, ser humilde significa ser consciente de que se é uma simples criatura. Não se deve confundir humildade com “miserabilismo”. O homem humilde, como está na verdade, reconhece objetivamente as suas qualidades e põe-nas a dar fruto, além de que não cai na soberba, porque é capaz de se dar conta de que todas as suas qualidades foram recibidas por Deus.

Tudo isso é verdade e estas considerações são equilibradas e valiosas. Mas falta um elemento importantíssimo: ver a humildade em Cristo e ver com mais atenção a humildade como no-la apresenta o Evangelho. Por exemplo, Cristo, no evangelho de hoje, não disse que o convidado devia sentar-se no lugar que lhe correspondia entre todos os lugares que havia. Disse que devia sentar-se no último lugar. Em realidade, Cristo com esta parábola, como em tantas outras, de forma velada, está a falar de si mesmo, está a falar do modo como el viveu a humildade e, necessariamente, do modo como a devemos viver. Ele é o Senhor do Céu e da Terra, o Criador de tudo, ao poder do qual nada escapa. E, no entanto, Ele morreu como o último dos bandidos. Quis deixar este mundo, momento tão importante, tomando o último lugar e, por isso, na sua humanidade foi elevado ao lugar mais elevado possível.

A humildade de Cristo é descrita de forma extraordinária, por São Paulo, na Epístola aos Filipenses: “Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz! Por isso Deus o sobreexaltou grandemente e o agraciou com o Nome que é sobre todo o nome...”

Aqui encontramos a humildade de Cristo e a humildade cristã. O Evangelho de São Marcos também a ensina de forma excelente: “O Filho não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”.

O homem humilde é aquele que vive fora de si mesmo e para os outros. A humildade é a força sobrenatural que nos dá o poder de não mais vivermos centrados em nós mesmos. Quem vive assim, não se preocupa se está bem ou se está mal, se foi humilhado ou louvado, se o trataram com deferência ou com indiferença, porque o seu centro de gravidade é o Outro, Deus, e também os outros.
Certo dia estava a pregar isso numa homilia e depois uma senhora veio ter comigo e disse-me: “Padre, isso é muito belo, e o nosso párroco levou-nos a este tipo de vida, uma vida totalmente para os outros, e simplesmente fiquei esgotada, não aguantei e agora tornei-me mais calculadora”. O comentário foi muito pertinente. É claro que temos de viver para os outros, porque é uma verdade do Evangelho tão central quanto irrenunciável , mas tudo depende do modo como se vive para os outros, tudo depende daquilo que quer dizer “viver para os outros”.

Se viver para os outros, significa somente “fazer coisas para os outros” e fazê-lo todo o tempo...acho que não iremos longe. Viver para os outros significa fundamentalmente ter o coração em Deus, viver numa profunda comunhão com Aquele que é a nossa vida. Viver para os outros não quer dizer revolucionar as actividades da nossa vida. Até pode ser que nem mudem muito. Significa sobretudo revolucionar o lugar que ocupa o nosso coração, passando a estar nos outros e, em primeiríssimo lugar, em Deus. Então as actividades, se calhar, não mudam muito exteriormente, mas a intenção é totalmente diversa: trabalha-se para o Reino de Deus.

Se o dom de nós mesmos não partir de uma profunda comunhão de corações com Deus, não partir da oração, passa a ser simplesmente uma actividade voluntarista. A pessoa dá-se aos outros porque acha que é o correcto e porque quer dar-se a eles. Quando isso acontece, sem se dar conta, a pessoa facilmente tende a buscar-se a si mesma. Infiltram-se intenções torcidas. Quer ser boa porque se quer ver boa. Falta a humildade. E então cansa-se, esgota-se, não tem as forças, dado que as forças só vêm de Deus e Ele não as dá a quem não actua com humildade.

Assim, vemos que a humildade não é uma virtude dos fracos, mas é força no Espírito, porque permite realizar o que esgotaria outros. Com efeito, o homem humilde esvazia-se de si mesmo para se encher do poder de Deus. O homem importante, precisamente porque é importante e tem muitas responsabilidades nas costas, necessita da força verdadeira de Deus, necessita da humildade. Essa o levará não já a olhar-se no espelho e a considerar o importante que é, mas a olhar para os outros, a descobrir que existe um mundo que precisa dele. E recordemos a frase de que partimos, a do sábio Ben Sirá: “quanto mais importante fores, mais deves humilhar-te e encontrarás graça diante do Senhor”. Sim, humilhar-se como Cristo, que era a pessoa mais importante que tenha pisado esta terra...mas não humilhar-se sem Cristo, senão esta pseudo atitude de humildade será de soberba. Com efeito o Senhor disse: “sem mim nada podeis”.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Domingo XXI do tempo comum, Ano C

LEITURA I Is 66, 18-21

«De todas as nações hão-de reconduzir os vossos irmãos»

Leitura do Livro de Isaías
Eis o que diz o Senhor:
«Eu virei reunir todas as nações e todas as línguas,
para que venham contemplar a minha glória.
Eu lhes darei um sinal
e de entre eles enviarei sobreviventes às nações:
a Társis, a Fut, a Lud, a Mosoc, a Rós, a Tubal e a Javã,
às ilhas remotas que não ouviram falar de Mim
nem contemplaram ainda a minha glória,
para que anunciem a minha glória entre as nações.
De todas as nações, como oferenda ao Senhor,
eles hão-de reconduzir todos os vossos irmãos,
em cavalos, em carros, em liteiras,
em mulas e em dromedários,
até ao meu santo monte, em Jerusalém __ diz o Senhor __
como os filhos de Israel trazem a sua oblação
em vaso puro ao templo do Senhor.
Também escolherei alguns deles para sacerdotes e levitas».
Palavra do Senhor.

LEITURA II Hebr 12, 5-7.11-13
 
«O Senhor corrige aquele que ama»

Leitura da Epístola aos Hebreus
Irmãos:
Já esquecestes a exortação que vos é dirigida,
como a filhos que sois:
«Meu filho, não desprezes a correcção do Senhor,
nem desanimes quando Ele te repreende;
porque o Senhor corrige aquele que ama
e castiga aquele que reconhece como filho».
É para vossa correcção que sofreis.
Deus trata-vos como filhos.
Qual é o filho a quem o pai não corrige?
Nenhuma correcção, quando se recebe,
é considerada como motivo de alegria, mas de tristeza.
Mais tarde, porém,
dá àqueles que assim foram exercitados
um fruto de paz e de justiça.
Por isso, levantai as vossas mãos fatigadas
e os vossos joelhos vacilantes
e dirigi os vossos passos por caminhos direitos,
para que o coxo não se extravie,
mas antes seja curado.
Palavra do Senhor.

EVANGELHO Lc 13, 22-30

«Hão-de vir do Oriente e do Ocidente e sentar-se-ão à mesa no reino de Deus»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo,
Jesus dirigia-Se para Jerusalém
e ensinava nas cidades e aldeias por onde passava.
Alguém Lhe perguntou:
«Senhor, são poucos os que se salvam?»
Ele respondeu:
«Esforçai-vos por entrar pela porta estreita,
porque Eu vos digo
que muitos tentarão entrar sem o conseguir.
Uma vez que o dono da casa se levante e feche a porta,
vós ficareis fora e batereis à porta, dizendo:
‘Abre-nos, senhor’;
mas ele responder-vos-á: ‘Não sei donde sois’.
Então começareis a dizer:
‘Comemos e bebemos contigo
e tu ensinaste nas nossas praças’.
Mas ele responderá:
‘Repito que não sei donde sois.
Afastai-vos de mim, todos os que praticais a iniquidade’.
Aí haverá choro e ranger de dentes,
quando virdes no reino de Deus
Abraão, Isaac e Jacob e todos os Profetas,
e vós a serdes postos fora.
Hão-de vir do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul,
e sentar-se-ão à mesa no reino de Deus.
Há últimos que serão dos primeiros
e primeiros que serão dos últimos».
Palavra da salvação.

Homilia do Pe. Antoine Coelho, LC

O Evangelho deste domingo ajuda-nos a recordar a seriedad da nossa opção cristã. “Senhor, são poucos os que se salvam?”, perguntam a Jesus. Ele responde: “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque eu vos digo que muitos tentarão entrar sem o conseguir”.

Recordo que, nos momentos da minha vida em que andava um pouco afastado do Senhor, este trecho do Evangelho deixava-me muito preocupado. “Serei dos que se hão-de salvar?”, pensava. “Que será de mim quando aparecer diante do Juiz supremo? Como justificarei a minha conducta?”

Certamente, são perguntas que todos temos de nos pôr num momento ou noutro da vida. Uma reflexão deste estilo foi decisiva para a conversão de São Francisco Xavier, quando meditou sobre este versículo do Evangelho: “De que serve ao homem conquistar o mundo, se com isso perder a sua alma?” São Bruno, fundador dos cartuxos, decidiu abandonar tudo e encerrar-se quase para toda a vida no silêncio da contemplação, quando, por um fenómeno extraordinário, descobriu junto com os seus conterrâneos, que um professor muito admirado por todos, se condenara para sempre.

Com efeito, Cristo chama-nos à conversão enquanto é tempo. “Convertei-vos porque o Reino de Deus está perto!” Sim, o momento do encontro com Cristo está sempre perto de nós e poderá dar-se de forma inesperada, como um ladrão que assalta um casa pela calada da noite. Os homens prudentes são os que se preparam para este encontro segundo os critérios do Evangelho e não segundo os juizos subjetivos de sua consciência: “mas eu não tenho pecados!”, “mas eu não faço mal a ninguém!”, “Ah, mas no fim de contas todos se salvam, Deus é tão bom; não é preciso ser fanático!”

Queremos saber quem é Deus? Queremos saber como será o juízo de Deus? Acudamos à Revelação que Deus fez de si mesmo, acudamos à Biblia. Mas não só. A Biblia está sujeita a muitas interpretações. Acudamos também à Tradição, ou seja, à Igreja, que nos ensinará como a Bíblia foi interpretada de forma contínua nestas questões, desde o tempo dos Apóstolos até aos nossos dias.

Desconfiemos quando ouvimos alguém dizer, seja leigo, seja sacerdote, seja teólogo, que a condenação eterna não existe. Para além de entrar em contradicção flagrante com um grande número de textos do Novo Testamento, não segue a Tradição sem interrupção da Igreja, começando pelos Apóstolos. Pessoalmente, confio decisivamente mais no que me diz a Igreja e o seu catecismo, do que nas opiniões privadas, por mais doutas que sejam. A Igreja é mais sábia que nós, os homens...e isso por ter a assistência especial e infalível do Espírito Santo em matéria de doutrina e moral.

É verdade que a porta que conduz ao Reino é estreita e que Deus necessita da nossa boa vontade para nos salvar, no entanto, também o Evangelho deste domingo recorda que “hão-de vir do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul, e sentar-se-ão à mesa no Reino de Deus”. No livro do Apocalipse, João teve o privilégio de contemplar um dos mais belos quadros que nos pinta a Bíblia: “Depois disso, eis que vi uma grande multidão, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas. Estavam de pé diante do trono e diante do Cordeiro, trajados com vestes brancas e com palmas na mão”. A porta é estreita, sim, mas não são poucos os que se salvam.

E porque hão-de vir tantos de tão longe, do Oriente e do Ocidente, de Norte e do Sul? É porque buscam um Juiz severo que os pode condenar eternamente? Não, é porque buscam Deus, ou seja, a Beleza em pessoa, o Amor em pessoa, a Bondade absoluta. É porque buscam quem já os foi buscar e morreu por eles na cruz. Afirmar a possibilidade da condenação eterna não é negar o Deus de amor. Antes pelo contrário: a condenação mostra bem que, sem o nosso Deus, fonte de toda a felicidade, a vida é um inferno. Converter-se nunca pode ser fugir das “chamas terríveis da condenação”...é buscar o amor. As “chamas” simplesmente mostram que não existe outra opção que o amor e que todos os outros caminhos, por mais atraentes que possam parecer não levam a nenhum lado.

Com esta certeza no coração, orientemos novamente as nossas vidas para Deus com redobrados desejos de corresponder ao seu amor, que tanto se preocupa por nos salvar. E pidamos ao Senhor que nos dé as forças para caminhar sem desfalecer. Digamos-lhe que não nos basta que Ele esteja no fim do caminho. Digamos-lhes que o queremos ao nosso lado, porque sabemos que sem Ele nada podemos e que com Ele até mesmo as veredas mais escarpadas não são caminhos desagradáveis. Até mesmo as noites mais escuras, com Ele por perto, parecerão dias claros. Sim, Senhor, vem a nós constantemente. Desde os primeiros raios do amanhecer, ao longo de toda a jornada, até bem dentro do repouso da noite, vem a nós Senhor Jesus!

sábado, 14 de agosto de 2010

Domingo XX do tempo comum, Ano C

LEITURA I Jer 38, 4-6.8-10

«Geraste-me como homem de discórdia para toda a terra» (Jer 15, 10)

Leitura do Livro de Jeremias
Naqueles dias,
os ministros disseram ao rei de Judá:
«Esse Jeremias deve morrer,
porque semeia o desânimo entre os combatentes
que ficaram na cidade e também todo o povo
com as palavras que diz.
Este homem não procura o bem do povo,
mas a sua perdição».
O rei Sedecias respondeu:
«Ele está nas vossas mãos;
o rei não tem poder para vos contrariar».
Apoderaram-se então de Jeremias
e, por meio de cordas,
fizeram-no descer à cisterna do príncipe Melquias,
situada no pátio da guarda.
Na cisterna não havia água, mas apenas lodo,
e Jeremias atolou-se no lodo.
Entretanto, Ebed-Melec, o etíope,
saiu do palácio e falou ao rei:
«Ó rei, meu senhor, esses homens procederam muito mal
tratando assim o profeta Jeremias:
meteram-no na cisterna, onde vai morrer de fome,
pois já não há pão na cidade».
Então o rei ordenou a Ebed-Melec, o etíope:
«Leva daqui contigo três homens
e retira da cisterna o profeta Jeremias,
antes que ele morra».
Palavra do Senhor.

LEITURA II Hebr 12, 1-4

«Corramos com perseverança para o combate que se apresenta diante de nós»

Leitura da Epístola aos Hebreus
Irmãos:
Estando nós rodeados de tão grande número de testemunhas,
ponhamos de parte todo o fardo e pecado que nos cerca
e corramos com perseverança para o combate
que se apresenta diante de nós,
fixando os olhos em Jesus,
guia da nossa fé e autor da sua perfeição.
Renunciando à alegria que tinha ao seu alcance,
Ele suportou a cruz, desprezando a sua ignomínia,
e está sentado à direita do trono de Deus.
Pensai n’Aquele que suportou contra Si
tão grande hostilidade da parte dos pecadores,
para não vos deixardes abater pelo desânimo.
Vós ainda não resististes até ao sangue,
na luta contra o pecado.
Palavra do Senhor.

EVANGELHO Lc 12, 49-53

«Não vim trazer a paz, mas a desunião»

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos:
«Eu vim trazer o fogo à terra
e que quero Eu senão que ele se acenda?
Tenho de receber um baptismo
e estou ansioso até que ele se realize.
Pensais que Eu vim estabelecer a paz na terra?
Não. Eu vos digo que vim trazer a divisão.
A partir de agora,
estarão cinco divididos numa casa:
três contra dois e dois contra três.
Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai,
a mãe contra a filha e a filha contra a mãe,
a sogra contra a nora e a nora contra a sogra».
Palavra da salvação.

Homilia do Pe. Antoine Coelho, LC

Às vezes o Evangelho parece contradizer-se. A liturgia deste domingo apresenta-nos um caso evidente. Sabemos que Cristo veio para dar-nos a paz. “Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz”, asegura Ele no Evangelho de São João. No entanto, na passagem evangélica de hoje, Cristo avisa que não veio trazer a paz na terra. “Eu vos digo que vim trazer a divisão”. A divisão afectará inclusive as relações dentro das próprias famílias. “Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai”.

Recordo certa vez ter falado com uma jovem senhora em Espanha sobre este tema. Dizia-me que o seu pai tinha aceitado com virtude cristã e grande espírito de fé um cancro que o tinha levado finalmente à morte. Esta experiência tinha-a fortalecido grandemente na sua fé, tinha-lhe mostrado com toda evidência a presença de uma força sobrenatural, pacificando e consolado o coração do seu pai.

Curiosamente, o seu irmão, educado da mesma forma que ela, por causa da situação do pai, renegava a fé. “Como era possível”, dizia ele, “que Deus permitisse que o pai morresse desta forma?” Este jovem não fora capaz de abrir o coração à acção iluminadora do Espírito. Contemplava a situação no seu aspecto periférico – o drama da morte do pai – sem poder penetrar com os olhos na realidade interior: a vitória luminosa de Cristo no coração de este homem que aceitava oferecer sua vida para a salvação das almas. Do lado de fora, a morte, do lado de dentro a Resurreição de Cristo, salvando um homem do egoísmo e abrindo-lhe as portas do Céu.

Um abismo separava agora o irmão da irmã, os quais viviam a partir deste momento em dois mundos opostos: o da fé, cheio de esperança na vitória final sobre a morte, e o do agnosticismo, cujo horizonte parece estar encerrado por todos os lados pelas trevas da morte.

Mas então não será que Cristo veio para semear a divisão entre os homens, empurrando-os irremediavelmente em visões do mundo incompatíveis? À luz desta situação, não seria melhor propor às religiões, e especialmente ao cristianismo, que relativizem mais os seus conteúdos, de modo que possamos alcançar mais facilmente um certo entendimento entre os homens? Penso que estas perguntas escondem uma certa ingenuidade. Com efeito, o relativismo que as sociedades occidentais parecem defender não é um caminho para a paz. Ao contrário, favorece grandemente a exploração do homem pelo homem, o domínio despótico dos fortes, que já nem sequer temem ter de dar conta um dia dos seus actos ao Criador. Não bastam vagos princípios religisos. Necessitamos verdades religiosas, verdades “fortes” e últimas que protegem o homem; senão o caminho está aberto para todo tipo de abusos.

Na verdade, Cristo veio dar a paz, mas é uma paz tal, que quem não a aceita opta mais decididamente pela escuridão. Rejeitar Deus é sempre nocivo, mas rejeitar um Deus que morre por nós na cruz, com amor infinito, é pior ainda. A paz, que nos dá Cristo, não é despótica, não é fruto de uma violência ou coacção. Esta paz é uma opção oferecida ao homem. E por isso, não é realmente Cristo que divide os homens. É o homem que se divide. E em primeiro lugar, esta divisão se dá interiormente, se dá no coração daquele que não aceita, por egoísmo, o amor de Deus, pois não segue o grito da sua consciência. E depois se propaga nas relações entre os homens.

A primeira leitura, de Jeremias, é um exemplo claro disso. O profeta anuncia a destruição iminente de Jerusalem se os judeus não se decidirem a abandonar os próprios caminhos, e a enveredar por aqueles do Senhor. Então o profeta é rejeitado por grande parte do povo e termina por ser lançado num poço, onde acabaria por morrer, se o Senhor não o protegesse. O homem, que recusa o Deus do amor, é mais vulnerável às seducções da violência e à tentação de enfrentar com crueldade quem lhe diz a verdade sobre a sua vida.

Os judeus do tempo de Jeremias, que se creíam talvez muito religiosos, não adoravam autênticamente o Deus verdadeiro e, por isso, era mais fácil não lhes importar enviar para um poço quem os incomodava. Mas não se davam conta que rejeitar Deus desta forma leva à destruição. O seu fim, de facto, era iminente e a destruição de Jerusalem por Nabucodonosor havia de ser terrível e de uma crueldade sem limites. Basta dizer que, sem qualquer sentimento de compaixão e contra todas as regras de nobreza, Nabucodonosor pediu que furassem diante dele os olhos de Sedecias, rei de Jerusalem.

Sendo realistas, segundo o modo como Deus nos ensina a ser realistas – através da Bíblia – devemos reconhecer que, quando nos afastamos de Deus, se estabelece uma secreta conivência com as forças do mal e, então, o caminho dos povos dirige-se insensivelmente ao abismo. Peçamos muito a Deus que as sendas da nossa civilização occidental se abram à paz que vem de Deus. Para isso, muitos olhos fechados têm se abrir, muitos corações confundidos, devem buscar a simplicidade de Deus. A nossa oração pode alcançar grandes graças. Que ela também nos possa guiar na realização de uma corajosa acção evangelizadora, não segundo as nossas concepções humanas, mas segundo os caminhos do Senhor. Não há que perder tempo.