«Estás com ciúmes por causa de mim? Quem dera que todo o povo fosse profeta!»
Leitura do Livro dos Números
Naqueles dias,o Senhor desceu na nuvem e falou com Moisés.Tirou uma parte do Espírito que estava nelee fê-lo poisar sobre setenta anciãos do povo.Logo que o Espírito poisou sobre eles,começaram a profetizar;mas não continuaram a fazê-lo.Tinham ficado no acampamento dois homens:um deles chamava-se Eldad e o outro Medad.O Espírito poisou também sobre eles,pois contavam-se entre os inscritos,embora não tivessem comparecido na tenda;e começaram a profetizar no acampamento.Um jovem correu a dizê-lo a Moisés:«Eldad e Medad estão a profetizar no acampamento».Então Josué, filho de Nun,que estava ao serviço de Moisés desde a juventude,tomou a palavra e disse:«Moisés, meu senhor, proíbe-os».Moisés, porém, respondeu-lhe:«Estás com ciúmes por causa de mim?Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profetae que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!»
Palavra do Senhor.
«As vossas riquezas estão apodrecidas»
Leitura da Epístola de São Tiago
Agora, vós, ó ricos, chorai e lamentai-vos,por causa das desgraças que vão cair sobre vós.As vossas riquezas estão apodrecidase as vossas vestes estão comidas pela traça.O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se,e a sua ferrugem vai dar testemunho contra vóse devorar a vossa carne como fogo.Acumulastes tesouros no fim dos tempos.Privastes do salário os trabalhadoresque ceifaram as vossas terras.O seu salário clama;e os brados dos ceifeiroschegaram aos ouvidos do Senhor do Universo.Levastes na terra uma vida regalada e libertina,cevastes os vossos corações para o dia da matança.Condenastes e matastes o justoe ele não vos resiste.
Palavra do Senhor.
«Quem não é contra nós é por nós. Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a»
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Naquele tempo,João disse a Jesus:«Mestre,nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nomee procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».Jesus respondeu:«Não o proibais;porque ninguém pode fazer um milagre em meu nomee depois dizer mal de Mim.Quem não é contra nós é por nós.Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.Se alguém escandalizar algum destes pequeninosque crêem em Mim,melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoçouma dessas mós movidas por um jumentoe o lançassem ao mar.Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;porque é melhor entrar mutilado na vidado que ter as duas mãos e ir para a Geena,para esse fogo que não se apaga.E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;porque é melhor entrar coxo na vidado que ter os dois pés e ser lançado na Geena.E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo,deita-o fora;porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhosdo que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,onde o verme não morre e o fogo não se apaga».
Palavra da salvação.
Homilia do Pe Antoine Coelho, LC
Homilia de 27 de Setembro 2009.
O Evangelho deste domingo apresenta-nos um quadro marginal dentro da vida de Jesus e dos apóstolos. Um desconhecido expulsa os demónios em nome de Jesus. É censurado pelos discípulos. Mas Cristo defende-o, “porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de mim”.
Este episódio mais bem secundário revela-nos no entanto uma verdade de grande importância na vida cristã. Dá-nos uma lição no que se refere a uma das atitudes espirituais mais daninhas tanto para a vida pessoal como para a Igreja: a de crer que somos de alguma forma os juízes do Espírito Santo e que este se deve submeter necessariamente aos nossos esquemas mentais. Por exemplo, com certa facilidade pode acontecer que sintamos a tentação de julgar certos grupos dentro da Igreja ou da paróquia, simplesmente porque têm um estilo diverso de viver a fé, fé essa, que, no entanto, é exactamente igual à nossa.
Vejamos os apóstolos. Eles estão todo o tempo com Jesus, seguem todos os seus passos, escutam todas as suas palavras. Cristo interpreta para eles de modo privado as suas parábolas. “A vocês foram revelados os Mistérios do Reino”, diz-lhe inclusive o Mestre no Evangelho de S. Lucas. Nada mais natural pensar que este homem que não está no grupo dos íntimos do Senhor, cujo nome nem conhecem, não tem direito de usar o nome do Mestre para expulsar demónios. O que eles não podem suspeitar é que a acção espiritual de Deus e a própria acção espiritual de Jesus vai muito mais além do que eles podem ver. Desborda tudo o que eles podem imaginar.
A atitude correcta do cristão não pode ser outra que a de se abrir à maravilhosa e variada acção de Deus. Claro, com discernimento, consultando quem sabe mais que eu, quem tem autoridade na Igreja, porque efectivamente há muita confusão religiosa por aí e muito engano…Mas não é certamente correcto querer obrigar o Deus infinito a entrar nos nossos modos de pensar limitados. Deus sempre nos vai surpreender porque Deus é…Deus. E ele tem necessariamente que nos surpreender, para o nosso bem. Assim mostra-nos que as rédeas as tem ele e não nós. Desta forma, Deus surpreendeu os discípulos com este desconhecido, que eles talvez nunca tinham visto, e que talvez expulsava os demónios melhor que eles e com mais fé. Do mesmo modo, como mostra a primeira leitura, ficaram estupefactos os israelitas ao constatar que o Espírito poisara sobre Eldad e Medad embora não tivessem comparecido na tenda com Moisés, que era o lugar esperado e adequado para as profecias. Mas o Espírito do Senhor é livre ou, melhor dito, é a liberdade, como diz São Paulo na carta aos Coríntios; e quem vive no Espírito, que sopra de onde não sabemos e vai aonde não sabemos, é também ele livre, ou melhor, é o homem autenticamente livre.
Mas a primeira e fundamental condição do coração para possuir a liberdade do Espírito é o que podemos chamar a abertura a Deus. Ela consiste, no fundo, em reconhecer que Deus é o senhor da minha vida e da história, que é ele quem tem o volante da minha existência. Como nos custa deixar este volante nas mãos de Deus! É provavelmente o que mais custa ao homem: deixar que o senhor actue livremente na sua vida, possa meter a mão em todos os seus planos pessoais e em todos os seus modos de pensar para modificar soberanamente o seu curso, porque contaminado pelo egoísmo. Mas não será isso uma espécie de tirania, de parte de Deus? Não.
Certa vez, um amigo seminarista decidiu remar em direcção a uma ilha do sul de Itália que se encontrava a uns dez quilómetros do litoral. Pensava que seria fácil pois possuía uma boa condição física. Tinha remado já muitas vezes e muitas horas dentro de rios e tinha enfrentado já situações perigosas. Várias horas depois, encontraram-no numa pequena ilha perdida, situada a uns 15 quilómetros a leste do seu objectivo. O que acontecera? Fora levado pelas correntes. Pensava ser o senhor da sua barca, pois não lhe faltavam músculos, nem vontade, nem remos. Mas esqueceu que debaixo da sua frágil embarcação existia um imenso mundo sobre o qual não tinha qualquer tipo de controlo: o mar. Esse mar imenso que não controlamos é a nossa vida, é o nosso coração, verdadeira selva de desejos incontroláveis, é a vida de tantos outros que nos influenciam de mil maneiras, são as muitas leis da natureza que ainda não conseguimos decifrar; e são também as forças invisíveis do bem e as invisíveis do mal, tão subtis que a ciência nem pode suspeitar da sua existência. Quantas correntes debaixo da nossa barca! E as vezes pensamos que com um frágil remo e a força do nosso braço, as poderemos controlar.
Por isso, a nossa liberdade só pode ser o Espírito do Senhor, pois todas as correntes do universo cujos percursos se perdem para nós na neblina do mistério, as passadas e as futuras, na sua quase infinita complexidade, estão todas nas suas mãos amorosas; tão infinitamente potentes essas mãos, quanto infinitamente delicadas connosco, pois não querem atropelar a nossa liberdade. Aprendamos a abrir-nos a este Espírito, aprendamos a ser dócil e a amar o que ele ama e como ele ama. Aprendamos a consultá-lo sinceramente, sem buscar antes a nossa solução, que não é muitas vezes nenhuma verdadeira solução.
O Evangelho pode ser as vezes um pouco duro com os apóstolos porque desnuda francamente as suas limitações. Mas também as suas nobrezas. É verdade que João falhou, julgou o Espírito à medida do seu pequeno espírito, mas teve a lealdade de consultar o Senhor ao respeito do seu procedimento. Que sejamos assim. Somos pequenos e frágeis e enganar-se faz parte da nossa condição humana, mas tenhamos sempre a humildade de nos apoiarmos em quem é mais experimentado ou recebeu do Senhor a responsabilidade de apascentar as ovelhas. Assim aprenderemos e, como são João, tornar-nos-emos pouco a pouco discípulos do amor misericordioso e benigno de Deus.
Pe. Antoine Coelho, LC